Em primeiro lugar, cabe uma precisão fundamental: analisar um filme a respeito de Elis Regina e Tom Jobim consiste num gesto muito diferente de avaliar Elis Regina e Tom Jobim. É impressionante a quantidade de olhares “especializados” que enxergam numa obra apenas seu tema, ao invés da representação do mesmo. Acreditam, deste modo, que amar a dupla de músicos consista em amar, automaticamente, o filme destinado a retratá-los.
Ora, personagens fascinantes já renderam biografias ruins, e pessoas desprezíveis motivaram retratos muito bons — além de todas as nuances entre estes opostos. “Ah, eu era apaixonado por este álbum, não tinha como não gostar do documentário, né?”, evocou uma voz de prestígio a respeito do resultado. Sim, tinha como. Enquanto observarmos num filme apenas a temática, em detrimento da linguagem, do discurso, da estética, da ideologia, não estamos praticando uma crítica de cinema propriamente dita.
Dito isto, Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você possui várias qualidades — não necessariamente imputáveis à direção, nem ao filme em si. Parte considerável dos prazeres deste projeto se devem a Elis Regina e Tom Jobim, além da equipe que decidiu registrar, em 1974, o processo criativo que resultou no álbum icônico. É fascinante assistir aos dois criando, junto de músicos e produtores, e discutindo cada acorde, letra e melodia. Percebe-se o encantamento da equipe diante das belas descobertas e o incômodo face aos desacordos.
O documentário insiste em retratar Elis como mulher frágil emocionalmente, enquanto Tom se converte num estandarte de firmeza artística, além de charmoso, encantador, criativo.
Além disso, trata-se de um material inédito, guardado durante décadas. Esta espécie de making of completa a experiência musical ao favorecer a percepção de músicos enquanto profissionais, que dedicam horas de trabalho, além de vasto conhecimento técnico para desenvolverem uma obra de tal qualidade. Os registros da década de 1970 afastam o imaginário de uma genialidade utópica que produziria canções sem esforço, tal qual um gesto divino. Pelo contrário, há muito suor, discussão e brigas no caminho que levou ao disco final.
O roteiro está repleto de informações relevantes, tanto a respeito do contexto histórico (os dois deixaram o Brasil, sob a ditadura militar, para gravarem o álbum numa Los Angeles libertária) quanto sobre a maneira como enxergavam um ao outro. De modo respeitoso, expõe as reticências de Tom com Elis, e vice-versa, quando se intercalam instantes de afinidade e disputas criativas ferozes. Egocentrismo e incompreensões marcaram o trabalho entre ambos, fato que também dilui a romantização das jornadas de criação artística.
A estrutura soa promissora inicialmente. Letreiros alternam com rigidez entre Elis e Tom antes do álbum. Dedica-se tempo a um, depois à outra, despertando a impressão de que constituirão metades simétricas da obra. Ambos recebem uma enxurrada de elogios hiperbólicos: Tom se converte num “gênio casual”, “um dos melhores musicistas do mundo”, enquanto Elias estaria no nível de Edith Piaf e Barbra Streisand. A gravação da dupla consistiria num projeto “perfeito”, “cristalino”.
Chama a atenção a vontade dos criadores em validar a importância desta parceria graças à aprovação estrangeira. Convidam-se críticos do New York Times para dissertar a respeito, em desfavor de críticos nacionais. Privilegiam-se depoimentos de estrangeiros, além de citações ao fato que Björk, Diana Krall e Céline Dion teriam amado o resultado. Ora, como o álbum repercutiu na música brasileira? Que impacto exerceu em artistas nacionais? Foi bem acolhido nas vendas, nos prêmios, na imprensa? Silêncio. Isso não interessa aos autores.
Em paralelo, a captação de entrevistas produz um resultado heterogêneo. As fotografias em alta definição e a gravação em película, com uma textura granulada de décadas atrás, despertam um efeito deslumbrante na tela grande do cinema. Há uma beleza de luzes e atmosfera, captada de maneira muito eficaz pela equipe de 1974. No entanto, as entrevistas contemporâneas, sobretudo aquelas registradas no Jardim Botânico, incomodam pela baixa qualidade da textura digital. Fica a impressão de que a filmagem em 4K de repente passa a um vídeo em 720p, num simples corte da montagem.
Fica a pergunta quanto à escolha de uma gravação excessivamente nítida e pixelizada durante a conversa com Paulo Braga e Hélio Delmiro, por exemplo. As captações em drone tampouco ajudam o resultado. Teria sido importante imaginar alguma forma de comunicação entre as duas linguagens e texturas. Do modo como foram agenciadas pela montagem, as captações parecem extraídas de filmes diferentes, e terminam por acentuar as deficiências das gravações atuais.
Ainda mais questionáveis são os julgamentos de valor efetuados a respeito de Elis Regina, em oposição a Tom Jobim. Conforme avança na narrativa, o documentário insiste em retratá-la como mulher frágil emocionalmente, que sabotou a própria carreira de propósito. Ela seria “completamente escrava de seu talento e seu poder”, dizem os homens entrevistados. Já Tom se converte num estandarte de firmeza artística, além de charmoso, encantador, criativo.
Elis é exposta num longo plano de detalhe de seu rosto no caixão, embora não exista nenhuma menção ao falecimento de Tom. Sugere-se que ela aprendeu muito com o colega, tornando-se uma cantora mais madura, mais contida, mais polida após a experiência do álbum. Já o companheiro não teria aprendido absolutamente nada com ela, nem aprimorado seu trabalho — até porque, aparentemente, não havia espaço para melhorar tamanho nível de excelência. Ele será comparado a uma bromélia raríssima, única no mundo, enquanto ela se converte, segundo a mesma metáfora, num abacaxi comum, que espeta ao tocar.
Ao final, sob forma de homenagem, a abordagem se revela discretamente machista e condescendente, disposta a perdoar os acessos de estrelismo e o alcoolismo de Tom Jobim, enquanto insiste nas falhas de Elis. Não se esperava que o projeto tomasse partido desta maneira, nem que pendesse à imagem depreciativa de mulheres hormonais, excessivamente sentimentais, precisando de uma figura patriarcal para mantê-las nos eixos. Restam a música magnífica, as interações de teor variado, o prazer de descobrir o making of guardado por tanto tempo. Restam, apesar do cinema, Elis e Tom.