Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você (2022)

Falsa simetria

título original (ano)
Elis & Tom, Só Tem de Ser com Você (2022)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
100 minutos
direção
Roberto de Oliveira
com
César Camargo Mariano, Paulo Braga, Roberto de Oliveira, Hélio Delmiro, Wayne Shorter, Roberto Menescal, Beth Jobim, Marcelo Bôscoli
visto em
Cinemas

Em primeiro lugar, cabe uma precisão fundamental: analisar um filme a respeito de Elis Regina e Tom Jobim consiste num gesto muito diferente de avaliar Elis Regina e Tom Jobim. É impressionante a quantidade de olhares “especializados” que enxergam numa obra apenas seu tema, ao invés da representação do mesmo. Acreditam, deste modo, que amar a dupla de músicos consista em amar, automaticamente, o filme destinado a retratá-los. 

Ora, personagens fascinantes já renderam biografias ruins, e pessoas desprezíveis motivaram retratos muito bons — além de todas as nuances entre estes opostos. “Ah, eu era apaixonado por este álbum, não tinha como não gostar do documentário, né?”, evocou uma voz de prestígio a respeito do resultado. Sim, tinha como. Enquanto observarmos num filme apenas a temática, em detrimento da linguagem, do discurso, da estética, da ideologia, não estamos praticando uma crítica de cinema propriamente dita.

Dito isto, Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você possui várias qualidades — não necessariamente imputáveis à direção, nem ao filme em si. Parte considerável dos prazeres deste projeto se devem a Elis Regina e Tom Jobim, além da equipe que decidiu registrar, em 1974, o processo criativo que resultou no álbum icônico. É fascinante assistir aos dois criando, junto de músicos e produtores, e discutindo cada acorde, letra e melodia. Percebe-se o encantamento da equipe diante das belas descobertas e o incômodo face aos desacordos. 

O documentário insiste em retratar Elis como mulher frágil emocionalmente, enquanto Tom se converte num estandarte de firmeza artística, além de charmoso, encantador, criativo.

Além disso, trata-se de um material inédito, guardado durante décadas. Esta espécie de making of completa a experiência musical ao favorecer a percepção de músicos enquanto profissionais, que dedicam horas de trabalho, além de vasto conhecimento técnico para desenvolverem uma obra de tal qualidade. Os registros da década de 1970 afastam o imaginário de uma genialidade utópica que produziria canções sem esforço, tal qual um gesto divino. Pelo contrário, há muito suor, discussão e brigas no caminho que levou ao disco final.

O roteiro está repleto de informações relevantes, tanto a respeito do contexto histórico (os dois deixaram o Brasil, sob a ditadura militar, para gravarem o álbum numa Los Angeles libertária) quanto sobre a maneira como enxergavam um ao outro. De modo respeitoso, expõe as reticências de Tom com Elis, e vice-versa, quando se intercalam instantes de afinidade e disputas criativas ferozes. Egocentrismo e incompreensões marcaram o trabalho entre ambos, fato que também dilui a romantização das jornadas de criação artística.

A estrutura soa promissora inicialmente. Letreiros alternam com rigidez entre Elis e Tom antes do álbum. Dedica-se tempo a um, depois à outra, despertando a impressão de que constituirão metades simétricas da obra. Ambos recebem uma enxurrada de elogios hiperbólicos: Tom se converte num “gênio casual”, “um dos melhores musicistas do mundo”, enquanto Elias estaria no nível de Edith Piaf e Barbra Streisand. A gravação da dupla consistiria num projeto “perfeito”, “cristalino”. 

Chama a atenção a vontade dos criadores em validar a importância desta parceria graças à aprovação estrangeira. Convidam-se críticos do New York Times para dissertar a respeito, em desfavor de críticos nacionais. Privilegiam-se depoimentos de estrangeiros, além de citações ao fato que Björk, Diana Krall e Céline Dion teriam amado o resultado. Ora, como o álbum repercutiu na música brasileira? Que impacto exerceu em artistas nacionais? Foi bem acolhido nas vendas, nos prêmios, na imprensa? Silêncio. Isso não interessa aos autores. 

Em paralelo, a captação de entrevistas produz um resultado heterogêneo. As fotografias em alta definição e a gravação em película, com uma textura granulada de décadas atrás, despertam um efeito deslumbrante na tela grande do cinema. Há uma beleza de luzes e atmosfera, captada de maneira muito eficaz pela equipe de 1974. No entanto, as entrevistas contemporâneas, sobretudo aquelas registradas no Jardim Botânico, incomodam pela baixa qualidade da textura digital. Fica a impressão de que a filmagem em 4K de repente passa a um vídeo em 720p, num simples corte da montagem.

Fica a pergunta quanto à escolha de uma gravação excessivamente nítida e pixelizada durante a conversa com Paulo Braga e Hélio Delmiro, por exemplo. As captações em drone tampouco ajudam o resultado. Teria sido importante imaginar alguma forma de comunicação entre as duas linguagens e texturas. Do modo como foram agenciadas pela montagem, as captações parecem extraídas de filmes diferentes, e terminam por acentuar as deficiências das gravações atuais.

Ainda mais questionáveis são os julgamentos de valor efetuados a respeito de Elis Regina, em oposição a Tom Jobim. Conforme avança na narrativa, o documentário insiste em retratá-la como mulher frágil emocionalmente, que sabotou a própria carreira de propósito. Ela seria “completamente escrava de seu talento e seu poder”, dizem os homens entrevistados. Já Tom se converte num estandarte de firmeza artística, além de charmoso, encantador, criativo.

Elis é exposta num longo plano de detalhe de seu rosto no caixão, embora não exista nenhuma menção ao falecimento de Tom. Sugere-se que ela aprendeu muito com o colega, tornando-se uma cantora mais madura, mais contida, mais polida após a experiência do álbum. Já o companheiro não teria aprendido absolutamente nada com ela, nem aprimorado seu trabalho — até porque, aparentemente, não havia espaço para melhorar tamanho nível de excelência. Ele será comparado a uma bromélia raríssima, única no mundo, enquanto ela se converte, segundo a mesma metáfora, num abacaxi comum, que espeta ao tocar.

Ao final, sob forma de homenagem, a abordagem se revela discretamente machista e condescendente, disposta a perdoar os acessos de estrelismo e o alcoolismo de Tom Jobim, enquanto insiste nas falhas de Elis. Não se esperava que o projeto tomasse partido desta maneira, nem que pendesse à imagem depreciativa de mulheres hormonais, excessivamente sentimentais, precisando de uma figura patriarcal para mantê-las nos eixos. Restam a música magnífica, as interações de teor variado, o prazer de descobrir o making of guardado por tanto tempo. Restam, apesar do cinema, Elis e Tom.

Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você (2022)
4
Nota 4/10

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