A primeira ousadia desta adaptação do clássico grego consiste no desapego quase total em relação à base literária concebida por Homero. O diretor Cristiano Burlan retém do poema original o pressuposto de um herói que enfrenta aventuras e precisa retornar para casa, aos braços de sua querida Penélope. O caráter épico e as referências culturais são voluntariamente deixadas de lado. Interessa sobretudo a oportunidade de deslocar a figura trágica ao centro de São Paulo — cenário de predileção do cineasta.
Portanto, pode-se dizer que ele se esforça em trazer a literatura para perto de seus temas favoritos, ao invés de alterar seus traços autorais visando se aproximar do texto da Odisseia. A segunda ousadia provém deste olhar sem desculpas, concessões, nem o “respeito” solene esperado das adaptações. Para quem procura uma ode humilde e submissa à escrita, encontrará um experimento audiovisual que não deve nada às suas raízes. Talvez seja possível afirmar que Burlan desenvolve este longa-metragem apesar de Homero. A literatura se converte numa espécie de regra adotada em nome da liberdade de descumpri-la.
Uma terceira ousadia decorreria, portanto, do formato vanguardista do projeto. O diretor tem experimentado bastante com a estética do cinema, de onde saem alguns de seus melhores trabalhos — vide o espetacular Antes do Fim (2017). Ulisses não efetua nenhuma concessão para agradar o espectador, diverti-lo ou facilitar seu caminho de compreensão. Pelo contrário, oferece um labirinto onde se perder, sem necessariamente encontrar um caminho. Desenvolve-se em oposição às relações convencionais de causa e consequência, ou ainda, de linearidade. O senso de finalidade também se perde — algo curioso, em se tratando de um personagem voltado ao objeto preciso de volta ao lar.
O personagem e o filme se repetem, voltam ao mesmo lugar, tomam rumos inesperados. Burlan filma como quem não deve explicação a ninguém — nem a Homero, nem ao espectador.
Talvez o único facilitador provenha, inesperadamente, da reta final, quando se explica ao espectador as escolhas sonoras. Uma voz em off (provavelmente de Ney Damacena, diretor de som) comenta o desejo por um “anti-cinema” e um “anti-som”. Defende a luta entre o filme e o espectador. Este último teria “que se esforçar para ver o filme, não pode ser uma coisa passiva”. Ironia do gesto: o único elemento pedagógico decorre da justificativa sobre a vontade de não ser pedagógico. Afronta-se o espectador, porém toma-se a precaução de avisá-lo que está sendo afrontado.
Aliás, por que o som seria o único elemento cuja elaboração conceitual se compartilha com o espectador? Discute-se a trilha sonora e a escolha da música durante uma perseguição, porém, nunca encontramos debate semelhante acerca da direção de fotografia, da montagem, das escolhas de direção de arte. Por que o preto e branco tão contrastado? Por que multiplicar as cenas de fuga, com personagens olhando para trás, temendo pela aproximação de forças que nunca chegam? Posto que se abraça a proposta autorreferencial, então que a metalinguagem dominasse a experiência de uma vez.
Ora, Burlan prefere que a obra se bifurque, erre, escape pelas tangentes. Um cinema marginal, enfim, ao retratar um indivíduo também percebido desta forma. Por isso, os bairros que abrangem o Minhocão, no centro de São Paulo, se tornam essenciais, com o acréscimo da figura de Jean-Claude Bernardet, no papel do homem em situação de rua, que já apareceu em projetos anteriores. A marginalidade dispensaria, inclusive, a noção de um caminho a traçar. Logo, o personagem e o filme se repetem, voltam ao mesmo lugar, tomam rumos inesperados. O cineasta filma como quem não deve explicação a ninguém — nem a Homero, nem ao espectador.
Apesar da figura única de Rodrigo Sanches no papel central, Penélope se desdobra em quatro mulheres diferentes, com rostos e experiências distintas. Narram tanto o abuso sexual sofrido quanto ponderações mais amplas a respeito da natureza do amor e dos relacionamentos. “Tudo o que eu queria era acordar numa cidade imensa como São Paulo”, “Só existe o aqui e o agora”. Uma Penélope traduz a canção “turbilhão da vida”, entoada por Jeanne Moreau em Jules e Jim (1962). Os amores se transformam numa evocação vaporosa, etérea, passageira.
Ao final, Ulisses parece menos um guerreiro obstinado do que um transeunte errante, tal qual as figuras de Ozualdo Candeias nos anos 1960. Vagueia de um lado para o outro porque, no fundo, não possui lugar nenhum para ir. Seu deslocamento constitui meio e finalidade — um dispositivo precioso para um cineasta fascinado pelas deambulações urbanas. O cinema do autor é marcado por mães que circulam por São Paulo sem saber onde encontrarem o filho; a hesitação a respeito de procurar o assassino da mãe; a perdição dos homens famintos sob os viadutos. Seus personagens se deslocam em busca de um propósito.
Logo, convém enxergar Ulisses enquanto tijolo suplementar de uma cinematografia que Burlan aprofunda ano após ano. O artista prolífico jamais desenvolve um longa-metragem dos sonhos durante uma década — ele prefere aprender fazendo, testar-se enquanto realiza, refletir quanto cria. O autor também se encontra em perpétuo movimento. Existe um gesto voraz, quase compulsivo de ir em direção ao cinema, lançando não apenas novos filmes, mas novos projetos ambiciosos de trilogias ou quadrilogias — Ulisses inicia a “trilogia errante”.
Este esforço traduz um diretor tão livre em suas formas quanto polido na linguagem do cinema — vide as imagens cuidadosamente pensadas em termos de enquadramento, duração, e de um preto e branco riquíssimo em nuances e variações. Aqui, a marginalidade não se confunde com descaso. Pode-se falar em um marginal experiente, um diretor que ostenta o caráter de outsider com um misto de orgulho, contentamento e irritação. Por isso, elabora seus projetos mais bonitos enquanto afronta este mesmo público que o acolhe e não acolhe, que o entende e não entende. Burlan parece prestes a alçar novos voos — vejamos onde a ambição estética o conduz.