O documentário se inicia no tempo presente. O jornalista e crítico musical Maurício Kubrusly tem 79 anos, e foi diagnosticado com uma forma de demência que o torna incapaz de reconhecer as pessoas ao redor — e mesmo a si próprio no espelho. Entretanto, lembra-se das canções que gosta, recorda versos e melodias. Eterno apaixonado por música, encontra atualmente, nos discos e CDs, uma de suas principais formas de expressão. Junto à esposa Beatriz Goulart, passa os dias numa realidade própria.
Na maioria dos projetos-homenagens, ou nos filmes de arquivo, os criadores listariam os melhores momentos da carreira, os instantes tristes ou engraçados, intercalados com falas recentes do biografado, além de depoimentos elogiosos de amigos e colegas de trabalho. Ora, Kubrusly: Mistério Sempre Há de Pintar por Aí possui um caráter muito diferente. O projeto assume uma dimensão íntima: concentra-se na vida conjugal com a esposa, na rotina doméstica, nas tardes escutando gravações ou nadando na piscina.
O longa-metragem serve como resistência simbólica à passagem do tempo. Um filme-memória para o homem sem memória.
Isso significa que os cineastas Caio Cavechini e Evelyn Kuriki possuem mais interesse na pessoa do que no profissional conhecido pelas matérias do Fantástico. Preferem a vida privada à pública, e as amizades às reportagens. Fogem à tentação de revelar alguma verdade por trás da fama, ou um Kubrusly diferente daquele que se imaginava. Ao invés do teor sensacionalista, abraçam a poesia melancólica do sujeito desaparecendo diante de nossos olhos.
A câmera serve como esforço para driblar a efemeridade, lutando contra um destino inevitável. Trata-se do registro enquanto prova de existência, reforço da memória, e conservação de instantes passageiros num âmbar da História. As imagens e os sons, neste caso, assumem uma vocação muito anterior à elegia habitual a uma grande figura da televisão brasileira. Resgatam fragmentos do passado não para o espectador, mas para Krubrusly, espectador de si próprio. Sentado no sofá, ao lado da esposa e da equipe cinematográfica, escuta com surpresa que o homem na televisão é ele mesmo.
Logo, o longa-metragem serve como resistência simbólica à passagem do tempo. Sugere que os acontecimentos ficam gravados, mesmo que o cérebro não consiga processá-los. Filma-se para que o protagonista talvez reative algumas conexões, desperte lembranças adormecidas. Enquanto Beatriz toca as músicas preferidas do marido, e Gilberto Gil entoa a canção de que o amigo tanto gostava no passado, os cineastas desenvolvem um filme-memória para o homem sem memória. Unem-se ao esforço coletivo para ajudar a figura querida. Em vez de uma obra sobre Kubrusly, oferecem uma obra para Kubrusly.
O cinema, em consequência, se converte num ato de solidariedade. Mistério Sempre Há de Pintar por Aí soa como um exercício terapêutico entre amigos próximos, ao qual o espectador recebe autorização para espiar. Nunca somos informados a respeito da cronologia da carreira, ou de prêmios e entrevistas marcantes — o espectador que procure tais dados na Internet, por conta própria. Kubrusly tampouco é situado num pedestal entre os maiores do país, em comparação a outros profissionais. O projeto se encontra num momento posterior, de salvaguarda e recolhimento. Aqui, afetos importam mais do que fatos.
Cavechino e Kuriki preocupam-se em sugerir, discretamente, a dissociação do real por meio da estética. Trabalham com cores distorcidas em pós-produção, aplicam algumas sobreposições da natureza à casa, e optam por diversas cenas de dissociação entre som a imagem (as falas da esposa ou do protagonista, em off, associadas a imagens não-referentes). O efeito se mostra discreto, nada vaidoso, contribuindo a uma impressão poética da perda de cognição. Assim, os cineastas evitam o olhar piedoso ou paternalista. Pelo contrário, começam com cenas divertidas na piscina, banhadas em trilha sonora ritmada, de modo a criar uma atmosfera de celebração.
Apesar dos esforços, é possível que a experiência sustente um caráter amargo. Afinal, carrega a aparência de filme póstumo para uma pessoa em vida. Os personagens falam sobre Kubrusly ao lado dele, sem que este compreenda o significado. Gilberto Gil menciona o colega no passado, com o mesmo no recinto: “Ele era um observador profundo da realidade”. Era. De fato, o herói se torna um personagem ausente, que domina todas as cenas ainda que dificilmente tenha compreensão do filme elaborado a seu respeito. O cinema ocorre tanto para Kubrusly quanto apesar dele. A obra consegue captar a dureza e a beleza desta ambiguidade.
No final, resta uma inesperada história de amor. Quem espera um projeto a respeito do jornalismo, da reportagem e da televisão, encontrará uma crônica do relacionamento afetivo enquanto dedicação incondicional ao outro. Beatriz emociona-se a cada recordação do marido, enquanto este grita pela ausência dela, nas poucas horas do dia em que sai de casa. “Onde está a minha pessoa?”, ela pergunta à cuidadora. Assim mesmo, “a minha pessoa”. O filme se encerra na ciranda de cuidados e interesses mútuos: os diretores amam Beatriz que ama Kubrusly que ama a música. Afagam-se e alegram-se, no limite possível para uma situação grave. Conservam numa espécie de cápsula do tempo aquilo que existe de mais vivo no homem querido. Passam as pessoas, passam as memórias, ficam os afetos.