É possível fazer uma leitura imediata de Matilda: O Musical filiando-o às obras comportadas e virtuosas que inundam as plataformas de streaming. Afinal, trata-se de uma garotinha descobrindo sua força e seus talentos, aprendendo o valor da educação e da cultura enquanto se rebela contra sujeitos malvados. Muitas produções parariam por aí, contentando-se com a condição de “filme de mensagem”, educacional e polido, ensinando às novas gerações o que deveriam fazer, e onde traçar a linha entre o certo e o errado.
Ora, felizmente o musical vai muito além da pedagogia comportada. Em primeiro lugar, o diretor Matthew Warchus assume uma fantasia tresloucada, multicolorida e próxima do surrealismo. Desde a sequência inicial, dedicada à cantoria dos bebês recém-nascidos, com cenários teatrais e kitsch, percebe-se que nada neste aspecto almeja o naturalismo. Melhor ainda: ao se distanciar do realismo social, perdendo qualquer forma de piedade ou paternalismo em relação à menina, a obra pode analisar de maneira mais crítica (e menos emocional) a situação em que ela se encontra. Este seria um dos principais valores políticos do cinema de gênero.
Em segundo lugar, as canções são marcadas por letras sarcásticas, mordazes e conscientes de sua posição de ficção. O compositor Tim Minchin, que já havia escrito as músicas para o teatro, explora o limite delicado de letras capazes de apontar dedos às feridas institucionais (da família, do governo, da escola) enquanto permanecem acessíveis às crianças — a classificação etária é de 10 anos. Cada música enxerga o mundo com estranhamento, algo possível graças ao intelecto excepcional da heroína e à sua condição de estrangeira no próprio lar. Por estar literalmente à distância de todos, Matilda admira os demais no posto análogo ao de um extraterrestre, satirizando convenções sociais e arranjos políticos tidos como naturais.
Além disso, trata-se de um filme engraçado, ágil e pop a respeito de pessoas tristes e deprimidas. A professora desprezada por sua fraqueza; a menina sem o amor dos pais; dois operários de baixa renda, sem saber contra quem se revoltam; a diretora tirânica tentando viver à sombra de um sucesso esquecido e uma bibliotecária sem clientes constituem as peças deste tabuleiro. Aqui, a escola nunca se torna sinônimo de bullying, ou de simulação para a entrada à fase adulta. Pelo contrário, a infância representa o momento em que se percebe o quão melancólico e deprimente pode ser o crescimento. Há um teor grave por trás dos sorrisos e da cantoria.
O discurso progressista reside na crença da transformação social pela base da pirâmide, a partir do momento que toma consciência de sua posição e se rebela em conjunto.
Assim, as crianças desta escola são “estranhas”, no sentido de não se encaixarem nos padrões. Não existem as tradicionais castas agressivas, de modo que a amizade se expande a uma noção de grupo homogêneo — gosta-se da turma inteira com a mesma intensidade. Este senso de união é fundamental a uma obra que prega o valor do coletivo e das revoluções contra toda forma de ditadura. É normal, e desejável, que os pequenos se rebelem contra os pais para formarem sua identidade autônoma. Aqui, em contrapartida, os adultos serão reprimidos demais ou agressivos em excesso, de modo que a revolução das crianças se converte numa guerra.
Portanto, a jornada de Matilda (Alisha Weir) vai além do processo de uma criança comum. Ela se descobre cidadã, capaz de modificar a ordem das coisas, recusando-se a aceitar leis impostas sem explicação, ou que lhe pareçam infundadas. Existe um germe de manifesto político em cada pronunciamento da menina contra a diretora Agatha Trunchbull (Emma Thompson) e em favor da professora Honey (Lashana Lynch). Para além de um contato sobre valores de amizade, família, solidariedade, etc., a garota atravessa um aprendizado social. Politicamente, o discurso se prova muito mais progressista do que a mera representatividade racial e de gênero na trama (que também é válida é importante). O caráter reformador reside na crença da transformação social pela base da pirâmide, a partir do momento que se toma consciência de sua posição e se rebela em conjunto — o que levará, simbolicamente, à luta dos estudantes por tomarem a escola para si mesmos.
Esta evolução ocorre de maneira metafórica: num momento inicial, a protagonista recebe, como uma inspiração divina, a história de um escapologista e sua amada equilibrista, ambos negros, lutando contra a opressão trabalhista no circo. Matilda foge da realidade opressora através da arte e da cultura, onde canaliza sua dor e lida com traumas presentes desde o nascimento (ela foi, e continua sendo, indesejada pelos pais). Adiante, a estudante descobre o poder de telecinese, movendo objetos com a mente. O dom é explorado de maneira singela e discreta (ela passa longe de uma super-heroína, ou de Carrie, a Estranha), porém representa a habilidade de modificar o cenário ao seu redor por meio do intelecto e do conhecimento (os poderes precisam ser treinados).
O longa-metragem oferece uma magia extravagante, porém de importância fundamental à trama e à construção psíquica da garota. Ao invés do efeito visual vaidoso, para “encher os olhos” e distrair da realidade, Warchus emprega a fantasia como forma de ir ao encontro do real, confrontando-o. Rumo ao final, a gula pecaminosa de Bruce será transformada em vantagem para a sobrevivência; o pequeno casebre da professora injustiçada se reveste de afeto; e as correntes que aprisionavam calabouços se convertem em instrumentos de libertação. Discute-se a desigualdade social, de gênero e de raça, culminando nos encontros de tempos e linhas narrativas diversas — quando Miss Honey canta em dueto com o pai ausente, e Matilda se converte na filha simbólica do homem negro.
O talento do diretor supera a sensibilidade política e o domínio da extravagância estética. Ele sabe trabalhar com o elenco para atingir este tom particular da comédia exageradíssima, mas ainda corrosiva e possivelmente sombria. Nunca se ri do sofrimento de Matilda, nem de Miss Honey. Agatha tampouco é transformada numa vilã perversa pelo prazer de sê-la. Para o cineasta, ridículas são as convenções da sociedade conservadora, as escolas sem prazer de educar, os pequenos ditadores destituídos de poder real. A pequena Alisha Weir é uma atriz mirim talentosíssima, cercada por grandes astros britânicos, muito confortáveis na transição entre drama, paródia e musical.
É um prazer encontrar Stephen Graham, Andrea Riseborough, Lashana Lynch e Emma Thompson divertindo-se com a possibilidade do exagero, sem julgar moralmente seus personagens. Trata-se de um grupo coeso na atuação, e repleto de preciosas transformações ao longo da jornada (“Você me chamou de minha filha?”). Conforme a história-dentro-da-história (o conto dos artistas circenses) contamina a trama principal, elabora-se um mundo onde ficções alimentam o real, e vice-versa. O universo pertence aos criadores, aos inventivos, aos sonhadores e rebeldes. Aqueles presos às regras (Trunchbull) e ao sonho pequeno-burguês de enriquecimento instantâneo (Sr. e Sra. Wormwood) serão devorados pelo vigor das crianças que dançam, cantam e se organizam com o vigor de pequenos revolucionários tomando as ruas da cidade. Matilda: O Musical transparece uma potência de ação lindamente filtrada pelo olhar lúdico da infância.