Matilda: O Musical (2022)

Os pequenos revolucionários

título original (ano)
Roald Dahl’s Matilda the Musical (2022)
país
Reino Unido, EUA
gênero
Musical, Comédia, Fantasia
duração
117 minutos
direção
Matthew Warchus
elenco
Alisha Weir, Emma Thompson, Lashana Lynch, Stephen Graham, Andrea Riseborough, Carl Spencer, Lauren Alexandra, Sindhu Vee, Winter Jarrett-Glasspool, Andrei Shen, Meesha Garrett, Ashton Robertson, Rei Yamauchi Fulker, Charlie Hodson-Prior, Katherine Kingsley
visto em
Netflix

É possível fazer uma leitura imediata de Matilda: O Musical filiando-o às obras comportadas e virtuosas que inundam as plataformas de streaming. Afinal, trata-se de uma garotinha descobrindo sua força e seus talentos, aprendendo o valor da educação e da cultura enquanto se rebela contra sujeitos malvados. Muitas produções parariam por aí, contentando-se com a condição de “filme de mensagem”, educacional e polido, ensinando às novas gerações o que deveriam fazer, e onde traçar a linha entre o certo e o errado. 

Ora, felizmente o musical vai muito além da pedagogia comportada. Em primeiro lugar, o diretor Matthew Warchus assume uma fantasia tresloucada, multicolorida e próxima do surrealismo. Desde a sequência inicial, dedicada à cantoria dos bebês recém-nascidos, com cenários teatrais e kitsch, percebe-se que nada neste aspecto almeja o naturalismo. Melhor ainda: ao se distanciar do realismo social, perdendo qualquer forma de piedade ou paternalismo em relação à menina, a obra pode analisar de maneira mais crítica (e menos emocional) a situação em que ela se encontra. Este seria um dos principais valores políticos do cinema de gênero.

Em segundo lugar, as canções são marcadas por letras sarcásticas, mordazes e conscientes de sua posição de ficção. O compositor Tim Minchin, que já havia escrito as músicas para o teatro, explora o limite delicado de letras capazes de apontar dedos às feridas institucionais (da família, do governo, da escola) enquanto permanecem acessíveis às crianças — a classificação etária é de 10 anos. Cada música enxerga o mundo com estranhamento, algo possível graças ao intelecto excepcional da heroína e à sua condição de estrangeira no próprio lar. Por estar literalmente à distância de todos, Matilda admira os demais no posto análogo ao de um extraterrestre, satirizando convenções sociais e arranjos políticos tidos como naturais.

Além disso, trata-se de um filme engraçado, ágil e pop a respeito de pessoas tristes e deprimidas. A professora desprezada por sua fraqueza; a menina sem o amor dos pais; dois operários de baixa renda, sem saber contra quem se revoltam; a diretora tirânica tentando viver à sombra de um sucesso esquecido e uma bibliotecária sem clientes constituem as peças deste tabuleiro. Aqui, a escola nunca se torna sinônimo de bullying, ou de simulação para a entrada à fase adulta. Pelo contrário, a infância representa o momento em que se percebe o quão melancólico e deprimente pode ser o crescimento. Há um teor grave por trás dos sorrisos e da cantoria.

O discurso progressista reside na crença da transformação social pela base da pirâmide, a partir do momento que toma consciência de sua posição e se rebela em conjunto.

Assim, as crianças desta escola são “estranhas”, no sentido de não se encaixarem nos padrões. Não existem as tradicionais castas agressivas, de modo que a amizade se expande a uma noção de grupo homogêneo — gosta-se da turma inteira com a mesma intensidade. Este senso de união é fundamental a uma obra que prega o valor do coletivo e das revoluções contra toda forma de ditadura. É normal, e desejável, que os pequenos se rebelem contra os pais para formarem sua identidade autônoma. Aqui, em contrapartida, os adultos serão reprimidos demais ou agressivos em excesso, de modo que a revolução das crianças se converte numa guerra. 

Portanto, a jornada de Matilda (Alisha Weir) vai além do processo de uma criança comum. Ela se descobre cidadã, capaz de modificar a ordem das coisas, recusando-se a aceitar leis impostas sem explicação, ou que lhe pareçam infundadas. Existe um germe de manifesto político em cada pronunciamento da menina contra a diretora Agatha Trunchbull (Emma Thompson) e em favor da professora Honey (Lashana Lynch). Para além de um contato sobre valores de amizade, família, solidariedade, etc., a garota atravessa um aprendizado social. Politicamente, o discurso se prova muito mais progressista do que a mera representatividade racial e de gênero na trama (que também é válida é importante). O caráter reformador reside na crença da transformação social pela base da pirâmide, a partir do momento que se toma consciência de sua posição e se rebela em conjunto — o que levará, simbolicamente, à luta dos estudantes por tomarem a escola para si mesmos.

Esta evolução ocorre de maneira metafórica: num momento inicial, a protagonista recebe, como uma inspiração divina, a história de um escapologista e sua amada equilibrista, ambos negros, lutando contra a opressão trabalhista no circo. Matilda foge da realidade opressora através da arte e da cultura, onde canaliza sua dor e lida com traumas presentes desde o nascimento (ela foi, e continua sendo, indesejada pelos pais). Adiante, a estudante descobre o poder de telecinese, movendo objetos com a mente. O dom é explorado de maneira singela e discreta (ela passa longe de uma super-heroína, ou de Carrie, a Estranha), porém representa a habilidade de modificar o cenário ao seu redor por meio do intelecto e do conhecimento (os poderes precisam ser treinados).

O longa-metragem oferece uma magia extravagante, porém de importância fundamental à trama e à construção psíquica da garota. Ao invés do efeito visual vaidoso, para “encher os olhos” e distrair da realidade, Warchus emprega a fantasia como forma de ir ao encontro do real, confrontando-o. Rumo ao final, a gula pecaminosa de Bruce será transformada em vantagem para a sobrevivência; o pequeno casebre da professora injustiçada se reveste de afeto; e as correntes que aprisionavam calabouços se convertem em instrumentos de libertação. Discute-se a desigualdade social, de gênero e de raça, culminando nos encontros de tempos e linhas narrativas diversas — quando Miss Honey canta em dueto com o pai ausente, e Matilda se converte na filha simbólica do homem negro. 

O talento do diretor supera a sensibilidade política e o domínio da extravagância estética. Ele sabe trabalhar com o elenco para atingir este tom particular da comédia exageradíssima, mas ainda corrosiva e possivelmente sombria. Nunca se ri do sofrimento de Matilda, nem de Miss Honey. Agatha tampouco é transformada numa vilã perversa pelo prazer de sê-la. Para o cineasta, ridículas são as convenções da sociedade conservadora, as escolas sem prazer de educar, os pequenos ditadores destituídos de poder real. A pequena Alisha Weir é uma atriz mirim talentosíssima, cercada por grandes astros britânicos, muito confortáveis na transição entre drama, paródia e musical. 

É um prazer encontrar Stephen Graham, Andrea Riseborough, Lashana Lynch e Emma Thompson divertindo-se com a possibilidade do exagero, sem julgar moralmente seus personagens. Trata-se de um grupo coeso na atuação, e repleto de preciosas transformações ao longo da jornada (“Você me chamou de minha filha?”). Conforme a história-dentro-da-história (o conto dos artistas circenses) contamina a trama principal, elabora-se um mundo onde ficções alimentam o real, e vice-versa. O universo pertence aos criadores, aos inventivos, aos sonhadores e rebeldes. Aqueles presos às regras (Trunchbull) e ao sonho pequeno-burguês de enriquecimento instantâneo (Sr. e Sra. Wormwood) serão devorados pelo vigor das crianças que dançam, cantam e se organizam com o vigor de pequenos revolucionários tomando as ruas da cidade. Matilda: O Musical transparece uma potência de ação lindamente filtrada pelo olhar lúdico da infância.

Matilda: O Musical (2022)
9
Nota 9/10

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