Le Grand Chariot (2022)

Pequeno filme de ação

título original (ano)
Le Grand Chariot (2022)
país
França, Suíça
gênero
Drama, Comédia
duração
95 minutos
direção
Philippe Garrel
Elenco
Louis Garrel, Damien Mongin, Esther Garrel, Lena Garrel, Francine Bergé, Aurélien Recoing, Mathilde Weil, Asma Messaoudene
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Se existe algo que a política dos autores trouxe ao cinema, a longo prazo, é o direito dos grandes criadores a uma liberdade inquestionável. Uma vez considerados autores (em detrimento de meros diretores), referendados pelos críticos e grandes festivais, ganham o direito de elaborar qualquer projeto que, assinado com sua marca, terá exibição e carinho garantidos de antemão. Em nome da permanência de artistas talentosos, e da coerência com o próprio julgamento daqueles que os elevaram ao topo da pirâmide, o status quo passou a apoiá-los em qualquer coisa que façam.

O principal exemplo deste raciocínio se encontra nas obras de Jean-Luc Godard, na última fase da carreira. Boas ou ruins, as colagens audiovisuais ganharam espaço nos principais festivais do mundo, recebendo importantes prêmios em Cannes. Caso um cineasta jovem surgisse com proposta semelhante, dificilmente chamaria atenção do comitê de seleção, por não possuir a marca, a figura, o histórico. Em última instância, cada nova seleção dos grandes, a partir do momento que fazem obras irregulares, constitui uma homenagem ao que já fizeram antes, uma renovação de votos deste matrimônio simbólico.

Philippe Garrel também pertence ao panteão. O diretor aclamado de obras como Liberté, La Nuit (1984) e Amantes Constantes (2005) tem apresentado filmes menos exigentes e sofisticados há vários anos. Mesmo assim, qual diretor artístico teria a coragem de recusar “um novo Garrel” (pensando no pai, ao invés dos filhos)? Pois o francês participa da mostra competitiva do Festival de Berlim com Le Grand Chariot, produção pequena, caseira e simplíssima. Cabe pensar que, aqui também, a obra apenas concorre ao Urso de Ouro porque foi dado aos artistas imunes o direito de fazerem qualquer coisa, e ainda serem reconhecidos, prestigiados e agraciados por isso.

A afirmação acima não significa que o filme seja ruim, longe disso. A trama sobre uma família de marionetistas, buscando sobreviver do ofício apesar das transformações da modernidade, possui um ritmo agradável, belos instantes de humor, e uma bem-vinda leveza na condução. A intimidade com os filhos Louis Garrel, Esther Garrel e Lena Garrel certamente ajuda na construção de uma narrativa fluida, de confiança e conforto, na qual os 95 minutos passam com uma facilidade ímpar. O pai-diretor reuniu a família numa brincadeira pouco onerosa, e também pouco ambiciosa.

A intimidade com os filhos Louis Garrel, Esther Garrel e Lena Garrel certamente ajuda na construção de uma narrativa fluida. O pai-diretor reuniu a família numa brincadeira pouco onerosa, e também pouco ambiciosa.

No entanto, as displicências e falhas seriam intoleráveis no circuito de arte caso o diretor não fosse, justamente, Philippe Garrel. A construção dos personagens se mostra bastante limitada — eles serão determinados somente pela função no teatro de marionetes. Quando o texto encontra dificuldade de explicar transformações ou o contexto das cenas, uma narradora em off surge de modo abrupto para oferecer as informações necessárias (o dedo de Jean-Claude Carrière, co-assinando o roteiro, pesa neste aspecto fabular). Em determinado instante, a sessão simplesmente se interrompe, sem qualquer conclusão (o que é diferente de um final aberto), talvez porque os autores não soubessem o que dizer a partir disso, nem como concluir sua ciranda de maneira apropriada.

Os conflitos surgem na forma de uma guinada brusca e artificial. A montagem, composta por diversos saltos no tempo, corta algumas semanas (ou meses, ou anos, nunca sabemos ao certo) para o instante futuro quando alguma transformação já ocorreu. Assim, um personagem está saudável, mas — corte na edição — ele já morreu. Uma senhora está saudável e ativa, mas — nova elipse — ela reaparece com demência avançada. O pintor Pieter (Damien Mongin) decide abandonar a esposa e o bebê recém-nascido, ao que a mulher aparenta responder “Tudo bem”. Louis (Louis Garrel) se encanta pela mulher recém-abandonada do melhor amigo. Resolve então persegui-la até ficarem juntos, ao que a moça e Pieter respondem “Tudo bem”. 

Paira uma atmosfera de inconsequência e aleatoriedade, como se nem o filme, nem os personagens se importassem de fato com o que lhes acontece. A verossimilhança passa longe destas reviravoltas fantasiosas. Nunca compreendemos a situação financeira da trupe, nem a organização e produção dos espetáculos, ou ainda o circuito dos artistas, supostamente itinerantes, para viverem de seus trabalhos. A câmera se atém ao olhar dos bastidores, com a exceção de um único ponto de vista do público (para ocultar uma revelação importante na coxia). É difícil acreditar na paixão deles pelos bonecos, assim como no conhecimento adquirido e transmitido ao longo de gerações.

Da mesma maneira, os amores e desamores são repentinos; as entradas e saídas nas casas de terceiros se aproximam do absurdo. Le Grand Chariot sustenta a aparência de um projeto desleixado, negligente. Nem o roteiro, nem o conceito da direção soavam prontos para entrar em produção. A montagem careceria de mais material, os atores certamente apresentariam nuances de suas motivações e desejos através de uma decupagem precisa. Quando os próprios autores não parecem se importar muito com suas criações, por que o público deveria fazê-lo?

Talvez a leitura mais interessante desta iniciativa nasça da assumida artificialidade ao conduzir um filme de ação, no sentido estrito do termo. Os personagens se encontram, se separam, se apresentam no teatro, brigam, conversam, andam. Leva-se em consideração apenas os movimentos, falas, atividades, em detrimento da psicologia ou das metáforas. Diversas cenas são marcadas pelos personagens entrando e saindo das portas; ou apenas suspensas por fades. Para uma narrativa sobre marionetes, surpreende a ausência de melancolia, nostalgia, de um resgate histórico do que este ofício representou nos tempos passados, ou do seu papel de resistência no tempo presente.

Isso decorre do fato que Garrel se foca no desejo dos artistas, jamais no interesse do público, da cidade, da comunidade — nem mesmo nas opções de lazer, cultura e arte que substituíram as marionetes. O texto demonstra grande dificuldade de se inserir no contexto político-social contemporâneo. Ao que tudo indica, os membros da trupe continuarão se apresentando tanto que eles mesmos o desejem. Ora, como abordar a penúria do trabalho artístico sem ressaltar trocas financeiras, ensaios, dedicação? Além disso, falta desenvolver o espectador, um elemento fundamental nesta troca artística. Para a nossa surpresa, o autor realiza uma obra de pouco romantismo para representar personagens poéticos, românticos, que lutam por um ideal. 

Logo, o fervor pressuposto nos familiares jamais contamina a estética. A família Garrel está competente em cena; a direção de fotografia efetua o mínimo necessário para trabalhar a luz natural a partir de um digital de grande nitidez (mas não se aventura a registrar a importante queda de uma árvore, por exemplo). Capta-se o som direto, o dia após dia, em planos de conjunto funcionais. Cumpre-se o serviço mínimo. É curiosa a fase em que cineastas veteranos se mostram mais apaixonados em iniciar novos projetos, colocando-se em movimento, do que em finalizá-los, poli-los, adaptá-los à sociedade da época. O filme se inicia e se encerra em si mesmo.

Le Grand Chariot (2022)
5
Nota 5/10

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