Girassol Vermelho (2025)

O processo de Romeu

título original (ano)
Girassol Vermelho (2025)
país
Brasil
gênero
Fantasia, Suspense
duração
110 minutos
direção
Eder Santos
elenco
Chico Diaz, Daniel de Oliveira, Luah Guimarães, Luiza Lemmertz, Mariano Mattos, Bárbara Paz, Aury Porto
visto em
28ª Mostra de Tiradentes (2025)

Esta deveria ser uma viagem comum, até o trem parar na estação errada. Romeu (Chico Díaz) é obrigado a descer, perguntando-se qual cidade seria aquela. O homem nunca encontrará resposta a esta pergunta — nem o espectador. O próprio fato de questionar os passantes o torna uma figura suspeita, um tal Elemento X. “É proibido perguntar”, decreta a voz da autoridade nos megafones locais. O herói percebe ter desembarcado num mundo ditatorial.

Adaptado da obra de Murilo Rubião, Girassol Vermelho efetua uma crônica fantástica das ditaduras e autocracias, associando-as aos desejos humanos. O protagonista, como de costume nestas narrativas, corresponde à figura que vem de fora, enxergando com surpresa e horror uma sociedade onde o ar é controlado pelo Estado, e os trabalhadores explorados se calam por medo de retaliação. O espectador não tem dificuldade de se identificar com o olhar de estranhamento, afinal, tentamos descobrir o funcionamento desta estrutura junto a Josef K, ou melhor, Romeu. Estamos tão atônitos quanto ele.

Desde a partida na estação, o diretor Eder Santos deixa muito claro o abandono do realismo e do naturalismo. O herói está envolvo por uma quantidade impensável de névoa, que nunca o abandona, até o destino final (a máquina de gelo seco trabalhou arduamente nesta produção). Há luzes incomuns, multicoloridas, posicionadas de modo igualmente improvável (o fundo de cada cenário, as beiradas dos planos). Elas emolduram cada imagem de azul, amarelo, vermelho, criando um efeito dramático quando aplicado à fumaça em contraluz.

Como de costume na literatura de Murilo Rubião, a crônica social se mistura à psicanálise. Girassol Vermelho transborda de uma fotografia chic, que teima em chamar atenção a si própria.

Por isso, cobranças em relação à verossimilhança e às relações convencionais de causa e consequência se tornam dispensáveis. Este universo mágico remete ao Processo de Kafka, combinado com a viagem indesejada ao avesso do País das Maravilhas. Todos os acontecimentos ocorrem para este viajante perdido, em função dele, como se o mundo fosse concebido para persegui-lo, seduzi-lo (no caso da femme fatale interpretada por Luiza Lemmertz), prendê-lo e torturá-lo — a ele, e somente ele. Estamos num pesadelo do qual, talvez, Romeu pudesse acordar depois de seus sonos inquietos. Mas não acorda.

Como de costume na literatura de Rubião, a crônica social se mistura à psicanálise. O personagem principal é questionado a respeito de seu medo e culpa. Ele encontra oráculos no trem, que servem como faíscas de uma provocação analítica. Entrega-se ao perigo assim que conhece Eva (existem Romeu e Eva neste conto, sem Julieta, nem Adão). Outra mulher sugere: “É preciso refinar os instintos. Assim você erra menos”. Trata-se de controle e entrega, de consciência e inconsciência. Conforme mergulha em sua ditadura particular (o super-ego?) e reencontra a mulher amada que deixou na estação, Romeu se confronta à possibilidade da concretização dos desejos, representados por uma orgia estilizada.

A propósito de estilo, Girassol Vermelho transborda de uma fotografia chic, que teima em chamar atenção a si própria. Uma vez instaurado o mecanismo de uma grande caixa transparente onde se insere Romeu, a direção de fotografia demonstra verdadeiro prazer em filmar o corpo de Chico Diaz sob uma avalanche de areia e purpurina; e depois, sob gazes (tornados coloridos pelo contraluz), sob a água, etc. Nosso mártir brilha, literalmente, através da fotografia kitsch e neon. Ele dança em câmera lenta, sofre em câmera lenta, observa o sexo em câmera lenta. Favorece-se um ideal de atratividade próximo da estética publicitária.

Deste modo, a ultra estetização consiste no valor de produção, e também na limitação deste projeto. Por um lado, ela aponta para um filme com recursos consideráveis, visíveis, por exemplo, no trabalho da direção de arte, ao equipar tantos galpões com a maquinaria de um futurismo perverso. Por outro lado, soterra parte de seu humanismo e sua coerência por trás de uma repetição de sequências tão sedutoras quanto esvaziadas, progressivamente, de sentido. As cenas de glam-torture se equivalem: seria indiferente se começasse com a água, depois o gás, a areia, o creme de barbear. 

O espectador nunca descobre uma única informação suplementar a respeito deste mundo, nem dos sentimentos de Romeu, através destas encenações equivalentes, que parecem existir para se aproveitar ao máximo a plasticidade da caixa de acrílico, das luzes no galpão, da névoa ininterrupta. Muitas cenas surpreendem por constituírem meras vaidades de criação, e sobreviveram sabe-se lá como ao processo de montagem: o herói deitado sobre asas desenhadas no chão, a caixa retangular onde ocorre o encontro amoroso (mais um espaço imponente, quando visto de fora, ainda que pouco aproveitado pela narrativa).

Assim, nenhum coadjuvante parece particularmente bem dirigido. A femme fatale, o porta-voz do regime ditatorial, os sucessivos interrogadores de Romeu (mais uma vez, representações intercambiáveis de militares). O trabalho de voz e corpo destas figuras arquetípicas apresenta pouca variação, além de uma intenção única, inabalável. Em paralelo, o roteiro não destrincha a sua pergunta mais importante: por que, podendo fugir à máquina de tortura (a porta de trás segue aberta), o homem não escapa jamais? Por que aceita o sofrimento que lhe é imposto? Por que nunca corre rumo ao trem, a outro lugar, aceitando de maneira passiva a sua sina? Aí residiria a verdadeira resposta ao enigma do longa-metragem.

Recentemente, o cinema mineiro desenvolveu uma bela adaptação de Murilo Rubião em O Lodo. O elenco do Grupo Galpão encenava, de maneira sucinta, os delírios de mais um homem perdido em seus desejos, num mundo cronicamente inviável. Ali, a fantasia irrompia em cenas pontuais, provocando espanto quando surgia. O absurdo aparentava ocorrer apenas aos olhos do protagonista — o que favorecia a compreensão de sua psique. Em Girassol Vermelho, no entanto, o universo mágico-colorido existe para Romeu, mas apesar de Romeu, muito antes dele, e para além dele

O sujeito, enquanto criador deste universo — supondo que o tenha elaborado em seus sonhos —, domina cada parte dos cenários, embora imagine uma trama de luta entre submissão e busca pela liberdade. A narrativa livre e fluida (para não dizer pouco precisa por parte da montagem), termina de maneira ainda mais etérea, abraçando uma poesia aberta a tantas interpretações que se aproxima da aleatoriedade. A imagem belíssima de Chico Diaz segurando flores, sob uma projeção de nuvens, sintetiza o procedimento em sua totalidade. Temos uma obra mais interessada em criar imagens grandiosas e estimular sentidos do que em desvendá-los, ou mesmo em produzir significado a partir deles.

Girassol Vermelho (2025)
6
Nota 6/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.