O Lodo: “A naturalidade do absurdo me inspirou muito”, explica Helvécio Ratton

A partir de 13 de abril de 2023, os cinemas brasileiros recebem uma interessante adaptação da obra de Murilo Rubião. O Lodo deriva do conto homônimo do escritor, a respeito de um funcionário público de vida entediante, até ter um encontro transformador com um psicanalista. Quando Manfredo (Eduardo Moreira), deprimido, tem uma primeira consulta ao Dr. Pink (Renato Parara), o analista não o deixa mais partir. Afirma que existe um “lodo” em seu peito, que precisa ser tratado urgentemente. O homem conservador se assusta, mas, no dia seguinte, acorda com um corte no peito, de onde sai um líquido escuro…

A partir deste instante, a trama se torna cada vez mais surrealista, ainda que com um pé no naturalismo — afinal, para o mundo ao redor de Manfredo, a rotina segue sem novidades. Esta trama digna de Kafka é estrelada por atores mineiros, sendo seis deles do prestigioso Grupo Galpão. O Meio Amargo conversou com o cineasta Helvécio Ratton a respeito desta delicada adaptação:

Fico feliz que o filme chegue aos cinemas, porque tive a oportunidade de vê-lo anos atrás.

O filme ficou pronto em 2020, mas a pandemia caiu em cima dele. Foi como se ele tivesse ficado pronto numa noite, mas veio a pandemia na manhã seguinte. Aí eu fico pensando: o filme chegou agora, e passou não só pela pandemia, mas também por essa epidemia contra a cultura que atravessamos durante esses anos. Num certo momento, até pensamos que seria hora de lançar em VoD, colocar na televisão. Mas sempre quisemos que a carreira dele começasse nas salas de cinema. O filme se fortaleceu, ao invés de se enfraquecer por essa espera. Ao contrário, parece que ele absorveu esse tempo de estranheza que a gente viveu. Parece que fez bem ao filme.

Esse mundo absurdo, com masculinidades fracassadas, refletem bem os últimos quatro anos no Brasil.

Eu tenho certeza de que o protagonista do filme, o Manfredo, votaria no Bolsonaro. Não tenho a menor dúvida. Ele tem uma vida enfadonha, repetitiva, um cotidiano insuportável.

Por que acreditou que o texto do Murilo Rubião renderia um bom longa-metragem?

Eu conhecia os textos mais famosos do Murilo Rubião, mas comecei a estudar a obra dele mais a fundo, há uns anos. Li tudo dele. Aí, eu descobri O Lodo. Era uma pequena joia, um conto pouco conhecido, de apenas oito páginas. Mas percebi que ele tinha tantas camadas e possibilidades de leitura que poderia render um bom roteiro. Chamei para trabalhar comigo o L.G. Bayão, com quem eu gosto muito de trabalhar. Ele também é fã do Murilo Rubião. Começamos a destrinchar e puxar as pontas que o filme permitia em relação ao psicanalista, o colega de escritório, a rotina. O roteiro parecia sugerir linhas de argumento: a mulher com quem ele transava, o colega com quem disputava uma promoção. Essas pontas permitiam esticar e abrir a história. Eu tenho formação em psicologia, e me interessam muito os assuntos do inconsciente. O fato de termos no centro da história uma relação analista-paciente me interessou muito. Por um lado, você pode ver um filme como uma crítica à psicanálise, em sua arrogância, e no fato de não considerar a resistência do paciente. Por outro lado, Lacan poderia dizer que o Dr. Pink é uma criação do Manfredo. Para ele, o paciente fantasia seu analista, e este nunca será o mesmo para todos os pacientes. A história tem um pé na psicanálise, e outro fora dela, com o absurdo e a realidade. Tudo isso me atraiu muito no conto.

A história tem um pé na psicanálise, e outro fora dela, com o absurdo e a realidade. Tudo isso me atraiu muito no conto.

A perseguição do Dr. Pink poderia ser imaginada por Manfredo.

Isso me diverte muito. Gosto de lidar com isso. Você pode simplificar a leitura a dizer: este homem teve um problema sério no passado, nunca trabalhou essa questão, tentou soterrar, e um dia isso voltou e desabou sobre ele. Mas este homem, um saco de vida, tinha tanto lodo que um dia transbordou, e precisava sair por algum lugar. O conto também materializava, ele mostrava a somatização do personagem. O Manfredo se sente mal, com o lodo que o psicanalista fala, mas de repente, ele amanhece com um corte no peito. Curiosamente, estamos tendo esta conversa na véspera da sexta-feira da Paixão, e uma das minhas referências para fazer o corte foram os estigmas de Cristo. Eu sempre me espantei que abrem estigmas em si mesmas na semana santa. Isso acontece especialmente nas Filipinas. Algumas pessoas por lá têm ferimentos nas mãos, onde foi pregado Jesus na cruz, ou um estigma onde teria entrado a lança. Eles somatizam esse aspecto de Cristo no corpo. 

Ao mesmo tempo, existe um componente bem erótico. É um mamilo sangrando, transbordando.

E é um mamilo masculino. Estamos acostumados à imagem do mamilo feminino, que alimenta. Agora, é o mamilo masculino jorrando lodo para fora. 

Outros símbolos são importantes, como a orelha-túnel no teto do consultório do psicanalista.

Eu trabalhei com dois parceiros de outros filmes: o Lauro Escorel e o Adrian Cooper. A gente tem uma afinidade artística e pessoal muito grande. Desde que escrevo o roteiro, já gosto de passar para ele, e a gente se aproxima juntos do projeto. No caso desse filme, como a gente penetra na mente e no inconsciente do protagonista, a gente precisaria ver através de frestas. O Lauro me sugeriu trabalhar com uma janela mais fechada, para gerar a sensação de claustrofobia que o personagem estava vivendo. Achei essa ideia maravilhosa. Definimos uma paleta de cores com o Adrian, que seria adequada à maneira de mover a câmera e de enquadrar. Cuidamos com muita atenção destes detalhes. Para essa escultura no teto, nós incrustamos na casa, e depois a proprietária pediu para manter, porque gostou muito. Eu parti da ideia de uma mandala que sugasse esse homem deitado no divã, como abduzido para dentro daquela estrutura. A mandala virou uma espiral, um labirinto. Eu e Adrian fizemos isso, e Lauro foi pensando em como teríamos uma luzinha ali dentro. Tudo isso foi muito pensado. A gente foi estudando esse filme muito antes, desde a construção da imagem até o trabalho com o elenco. Foi a primeira vez que eu realmente trabalhei um elenco pra valer antes da filmagem.

Essa não é uma história para ser filmada com naturalismo de novela. Por outro lado, ela é realista, e eu não quero um tom empostado. Era um fio de navalha para essa interpretação chegar no tom certo.

Em especial, com o fato de ser uma trupe teatral, muito acostumada a trabalhar junto.

Isso foi muito favorável. Vários daqueles atores já tinham trabalhado comigo. O protagonista, Eduardo Moreira, tinha feito Batismo de Sangue, e eu tinha gostado muito do trabalho dele. Geralmente, quando chego ao último tratamento do roteiro, eu já começo a ver o ator. Pode até não dar certo depois, por vários motivos. Mas começo a pensar em alguém, e neste caso, pensei no Eduardo Moreira e em outros atores do Grupo Galpão. Decidi trabalhar apenas com atores do Galpão e atores de Minas Gerais. São seis ou sete pessoas do Galpão, além de um núcleo de ótimos atores mineiros. Eu já tinha trabalhado com eles, e eles já tinham trabalhado entre si. Quando sentei para discutir o roteiro com eles, essa foi uma base maravilhosa. Essa não é uma história para ser filmada com naturalismo de novela. Por outro lado, ela é realista, e eu não quero um tom empostado. Era um fio de navalha para essa interpretação chegar no tom certo. Com o trabalho, fomos chegando nisso. A entrega do Eduardo ao protagonista, a transformação mental e física que ele passa ao longo da história é impressionante. Isso acabou contagiando a todos os atores que trabalham com ele. A trupe se integrou de maneira maravilhosa.

Gosto que o Manfredo não tenha controle nenhum sobre a própria vida. As pessoas se impõem, determinam o que ele precisa fazer — assim como os cortes que aparecem no peito.

A incapacidade dele de reagir diz respeito à culpa que ele carrega. Essa é a história de um incesto, e isso o paralisa. Quando o passado retorna de modo tão brutal, ele fica enfraquecido. A irmã percebe isso. Ela chega e toma o poder da casa imediatamente. Ela era uma figura rejeitada, que ficou longe da vida dele, sabe-se lá onde, devido ao que ele fez. Mas esta culpa vem e o atropela. À medida que ele se sente deprimido por esta vida monótona, mas com um lodo dentro, isso paralisa o Manfredo e o deixa indefeso. Quando o Dr. Pink diz: “Você vai fazer tantas sessões por semana, pagando tanto”, e começa a insistir, ele se torna um stalker. É um psicanalista moderníssimo: se você não vai até ele, ele vai até você. Tem algo curioso nesse profissional, e que foi comentado por alguns psicanalistas que viram o filme: a vontade do Dr. Pink de tratá-lo. Uma hora, ele diz: “Eu devolvo o dinheiro que você me pagou na justiça, e te trato de graça. Vamos marcar uma sessão logo”. É uma vontade de devorar o Manfredo. O filme parece simples, mas é extremamente complexo.

A força do texto vem disso: o absurdo adquire um caráter revelador. Ele revela aspectos que a gente não perceberia no cotidiano comum.

O ponto de vista é instigante. Existem vários absurdos acontecendo para ele, mas para quem vê de fora, o mundo segue seu rumo normal.

O fato de ele sonhar com um corte no peito, e acordar com um corte real, tem certa naturalidade. Acho que isso remete a Kafka: o fato de ele acordar como barata não choca o mundo. Isso desagrada as pessoas da casa, que de repente precisam conviver com uma barata, mas o mundo ao redor continua normalmente. Isso é algo que me atrai muito no Murilo Rubião e nas histórias dele: a naturalidade com que ele traz o absurdo para a vida dos personagens. Você não insere o absurdo num cenário absurdo por si próprio, mas num cenário realista. A força do texto vem disso: a partir deste momento, o absurdo adquire um caráter revelador. Ele revela aspectos que a gente não perceberia no cotidiano comum. Mas isso precisa da realidade para acontecer.

É uma questão de tom. A mesma premissa poderia dar origem ao suspense psicológico e ao terror.

A naturalidade do absurdo me inspirou muito. Queria lidar com isso com naturalidade, para que a surpresa viesse daí. É como o fato de ele não querer ir às consultas, e depois ser processado porque não compareceu. E tem que pagar por isso, porque o psicanalista estava esperando por ele. É absurdo, mas é crível. Dá para acreditar nisso. Essas questões estão hoje na ordem do dia. Passamos por tantas coisas nesses anos que alguém dizer, hoje, que faz terapia, passou a ser algo corriqueiro. Até pouco tempo atrás, era algo preocupante. Estamos naturalizando um pouco mais o processo terapêutico.

Você quis que os atores se baseassem no texto do Murilo Rubião, ou se ativessem ao roteiro?

Eu não sugeri a leitura do roteiro a nenhum deles, mas eles leram por conta própria. O Eduardo leu, e os outros também buscaram por conta própria. Neste caso, tem uma relação interessante enquanto adaptação: o roteiro está inteiro no filme. Por outro lado, o filme traz novas leituras para essa história, e isso bateu muito bem com eles. Os atores mergulharam no roteiro. Como lemos antes, e conversamos individualmente, antes de fazer leituras em grupo, foi um trabalho meticuloso. Foi a primeira vez que trabalhei dessa forma, por causa do feitio dessa história, do tom dela. Hoje, acho que foi a melhor maneira possível, porque essa não era uma história para sair improvisando diálogos. Eu poderia cair num naturalismo rasteiro, que não me interessava. Preferia ter o texto afiado, mas não empostado. Ele teria um pé na realidade, mas também os diálogos trabalhados, com intenção e tempo definidos.

Eu gosto das adaptações. […] Mas não sei filmar sem me apropriar da história. Preciso considerar que ela é minha, no sentido de ser minha leitura.

Você é um diretor que sempre gostou muito das adaptações, aliás. Existe a preocupação de nem ficar submisso ao material original, nem se impor a ponto de aniquilar a essência do texto de origem?

Eu gosto das adaptações. Elas são muito diferentes: no caso do Menino Maluquinho, não existe muito uma história ali, mas existe um personagem. Isso me dava bastante liberdade para criar as histórias. Batismo de Sangue ou Amor e Cia. eram leituras bem diferentes. Mas eu não sei filmar sem me apropriar da história. Preciso considerar que ela é minha, no sentido de ser minha leitura. Posso mudar coisas fortes dentro da história, dar rumos diferentes. Precisa ser uma história minha, a partir da história do outro. Respeito a proposta alheia, mas me sinto livre na medida que livro é livro, e filme é filme. São linguagens muito diferentes.

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