“Esta é uma história real”. A frase apresentada no início do filme condiciona imediatamente a leitura. Somos levados a interpretar o que se segue com um grau suplementar de seriedade e respeito, devido à representação da vida de outra pessoa. Neste momento, a representação do mundo se descola do caráter fictício para buscar um status mais elevado: esta não seria apenas uma história, mas sim um episódio verídico.
A menção a uma história real tem sido utilizada com tanta frequência que teve seu valor desgastado no pacto de crença com o espectador — até filmes sobre possessões demoníacas utilizam a suposta comprovação. No entanto, ainda constitui uma maneira de alertar o interlocutor quanto à seriedade do que se segue, como se o próprio criador e sua equipe nos dissessem: “Levamos isso aqui a sério”. A partir deste ponto, é difícil esperar por alguma forma de leveza.
A sugestão de realidade se torna particularmente curiosa em Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar (2021) por se tratar de uma animação. Esta linguagem pode surgir do zero, a partir dos traços de um desenhista numa folha em branco, ou então nas telas do computador — ela não precisa partir de uma apreensão do mundo ao redor. Curiosamente, estes desenhos se colam à estrutura do documentário por meio de uma entrevista bastante convencional, quando o protagonista narra seu passado de opressão e fuga do Afeganistão em guerra civil. O hibridismo relembra que documentários e animações podem ser dramas, comédias, suspenses, policiais, ao invés de se definirem como gêneros próprios. Aliás, gêneros foram concebidos para se cruzarem e se redefinirem — eles são porosos e “impuros” por natureza.
Aqui, a linguagem da animação reflete em posicionamentos políticos evidentes. O recurso preserva a identidade de Amin, protagonista cujo percurso precisa ser oculto devido às violações sofridas na juventude. Os traços do desenho rompem com o real, permitindo refletir com distanciamento acerca da imigração, do tráfico humano e das guerras sem o choque imediato de corpos ensanguentados ou pessoas espancadas. O caráter lúdico, intrínseco ao desenho, funciona como porta de entrada para que o espectador tome um passo atrás ao observar este panorama.
Em contrapartida, o projeto insiste em se reafirmar como documentário. Revela-se o dispositivo da câmera, dos microfones, além dos episódios quando Amin, perturbado pelos relatos, pede que interrompam a gravação. A estrutura narrativa se mantém linear e descritiva em excesso: o homem basicamente enumera suas passagens, em ordem cronológica, transformando a jornada num longo flashback até o instante da conversa com o diretor. Jonas Poher Rasmussen inclusive relembra o primeiro encontro entre os dois amigos. O drama se converte numa grande reconstituição de caso.
Os aspectos mais interessantes decorrem das fricções na fronteira entre documentário e animação.
Talvez os aspectos mais interessantes decorram das fricções na fronteira entre documentário e animação. É comum que um filme sobre uma “história real” apresente fotografias das pessoas mencionadas, além de trechos em vídeo. Aqui, as fotografias são animadas, assim como vídeos e telenovelas mexicanas. Estas provas de existência serão “borradas” para se adequarem ao propósito estético e político da obra. Tem-se um duplo decalque do real: a foto verídica se converte em imagem da foto, e depois em animação da imagem da foto.
Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar também impressiona quando a direção enfim se liberta dos caminhos tradicionais para investir nos recursos mais livres que o desenho proporciona. Quando Amin descreve uma violência perturbadora, o traço se transforma num esboço sem cores, de rabiscos fortes com aparência de improviso e urgência. Há uma precaução ética fundamental em evitar o prazer do sofrimento alheio e o espetáculo da miséria. Apesar da trilha sonora triste, os personagens raramente choram ou lamentam seu passado.
Exceto por estas sequências, o longa-metragem segue pelo caminho seguro de personagens com traço cartunesco e movimentos simples, sobrepostos a cenários mais detalhados e complexos em termos de construção, textura e iluminação. Adota-se a paleta de cores bege e marrom, de poucas variações. Mesmo as paisagens da Suécia são pouco ensolaradas, preservando a atmosfera densa. Em geral, Rasmussen limita a profundidade de campo para destacar os protagonistas nítidos em primeiro plano.
Em sucintos 89 minutos, ele narra uma trajetória de inadequações sociais que o subtítulo brasileiro traduziu de maneira explicativa, assemelhando-se a um improvável spin-off do Homem-Aranha. Amin fugiu do Afeganistão rumo à Rússia, então à Dinamarca e à Suécia. Enfrentou inúmeros obstáculos por ser imigrante, estrangeiro, refugiado, árabe e gay. Estas formas de exclusão se combinam de maneira orgânica, sem explicações históricas ou geográficas. O autor está mais preocupado com o impacto das guerras na psique do herói do que nas circunstâncias que levaram ao surgimento dos conflitos políticos.
De fato, a jornada psicológica se mostra mais complexa e recompensadora do que o retrato tímido da geopolítica internacional. Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar jamais aponta o dedo a qualquer nação ou sistema, preferindo lamentar a existência de casos como este. Assim, privilegia um humanismo amplo em detrimento do ativismo ferrenho: o roteiro defende os refugiados sem ofender nem incomodar qualquer nação específica. Esta escolha pode ajudar a compreender a bela recepção do drama mundo afora, inclusive nos países mencionados, que dificilmente se sentiriam afetados pela crítica tão branda. Além disso, a inesperada coprodução entre doze países justifica a ausência de um ponto de vista incisivo, preferindo uma espécia de “versão europeia oficial” a respeito da crise de refugiados — um filme-ONU, para o bem e para o mal.
Mesmo assim, em termos de um mergulho íntimo, o resultado se prova uma bela fusão de linguagens e percursos, combinados com um gênero acessível e uma linguagem próxima ao feel good movie (pelos traços fáceis do desenho, os momentos de descontração do bar gay etc.). Enquanto reconstrução de uma memória afetiva, propensa a recalques, repetições e deturpações dos fatos, esta animação entrecortada por imagens de arquivo em live action encontra um caminho bastante frutífero. Preocupado em atingir o maior número de pessoas à sua mensagem de abertura à diferença, o cineasta oferece uma obra singela em alcance político, porém profunda na tentativa de compreender o outro.