Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar (2021)

A prova pela animação

título original (ano)
Flugt (2021)
país
Dinamarca, França, Noruega, Suécia, Holanda, Reino Unido, EUA, Finlândia, Itália, Espanha, Estônia, Eslovênia
gênero
Drama, Biografia, Animação, Documentário
duração
89 minutos
direção
Jonas Poher Rasmussen
elenco
Daniel Karimyar, Fardin Mijdzadeh, Milad Eskandari,
Belal Faiz, Elaha Faiz, Zahra Mehrwarz, Sadia Faiz,
Rashid Aitouganov
visto em
Cinemas

“Esta é uma história real”. A frase apresentada no início do filme condiciona imediatamente a leitura. Somos levados a interpretar o que se segue com um grau suplementar de seriedade e respeito, devido à representação da vida de outra pessoa. Neste momento, a representação do mundo se descola do caráter fictício para buscar um status mais elevado: esta não seria apenas uma história, mas sim um episódio verídico.

A menção a uma história real tem sido utilizada com tanta frequência que teve seu valor desgastado no pacto de crença com o espectador — até filmes sobre possessões demoníacas utilizam a suposta comprovação. No entanto, ainda constitui uma maneira de alertar o interlocutor quanto à seriedade do que se segue, como se o próprio criador e sua equipe nos dissessem: “Levamos isso aqui a sério”. A partir deste ponto, é difícil esperar por alguma forma de leveza.

A sugestão de realidade se torna particularmente curiosa em Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar (2021) por se tratar de uma animação. Esta linguagem pode surgir do zero, a partir dos traços de um desenhista numa folha em branco, ou então nas telas do computador — ela não precisa partir de uma apreensão do mundo ao redor. Curiosamente, estes desenhos se colam à estrutura do documentário por meio de uma entrevista bastante convencional, quando o protagonista narra seu passado de opressão e fuga do Afeganistão em guerra civil. O hibridismo relembra que documentários e animações podem ser dramas, comédias, suspenses, policiais, ao invés de se definirem como gêneros próprios. Aliás, gêneros foram concebidos para se cruzarem e se redefinirem — eles são porosos e “impuros” por natureza.

Aqui, a linguagem da animação reflete em posicionamentos políticos evidentes. O recurso preserva a identidade de Amin, protagonista cujo percurso precisa ser oculto devido às violações sofridas na juventude. Os traços do desenho rompem com o real, permitindo refletir com distanciamento acerca da imigração, do tráfico humano e das guerras sem o choque imediato de corpos ensanguentados ou pessoas espancadas. O caráter lúdico, intrínseco ao desenho, funciona como porta de entrada para que o espectador tome um passo atrás ao observar este panorama.

Em contrapartida, o projeto insiste em se reafirmar como documentário. Revela-se o dispositivo da câmera, dos microfones, além dos episódios quando Amin, perturbado pelos relatos, pede que interrompam a gravação. A estrutura narrativa se mantém linear e descritiva em excesso: o homem basicamente enumera suas passagens, em ordem cronológica, transformando a jornada num longo flashback até o instante da conversa com o diretor. Jonas Poher Rasmussen inclusive relembra o primeiro encontro entre os dois amigos. O drama se converte numa grande reconstituição de caso.

Os aspectos mais interessantes decorrem das fricções na fronteira entre documentário e animação.

Talvez os aspectos mais interessantes decorram das fricções na fronteira entre documentário e animação. É comum que um filme sobre uma “história real” apresente fotografias das pessoas mencionadas, além de trechos em vídeo. Aqui, as fotografias são animadas, assim como vídeos e telenovelas mexicanas. Estas provas de existência serão “borradas” para se adequarem ao propósito estético e político da obra. Tem-se um duplo decalque do real: a foto verídica se converte em imagem da foto, e depois em animação da imagem da foto. 

Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar também impressiona quando a direção enfim se liberta dos caminhos tradicionais para investir nos recursos mais livres que o desenho proporciona. Quando Amin descreve uma violência perturbadora, o traço se transforma num esboço sem cores, de rabiscos fortes com aparência de improviso e urgência. Há uma precaução ética fundamental em evitar o prazer do sofrimento alheio e o espetáculo da miséria. Apesar da trilha sonora triste, os personagens raramente choram ou lamentam seu passado.

Exceto por estas sequências, o longa-metragem segue pelo caminho seguro de personagens com traço cartunesco e movimentos simples, sobrepostos a cenários mais detalhados e complexos em termos de construção, textura e iluminação. Adota-se a paleta de cores bege e marrom, de poucas variações. Mesmo as paisagens da Suécia são pouco ensolaradas, preservando a atmosfera densa. Em geral, Rasmussen limita a profundidade de campo para destacar os protagonistas nítidos em primeiro plano.

Em sucintos 89 minutos, ele narra uma trajetória de inadequações sociais que o subtítulo brasileiro traduziu de maneira explicativa, assemelhando-se a um improvável spin-off do Homem-Aranha. Amin fugiu do Afeganistão rumo à Rússia, então à Dinamarca e à Suécia. Enfrentou inúmeros obstáculos por ser imigrante, estrangeiro, refugiado, árabe e gay. Estas formas de exclusão se combinam de maneira orgânica, sem explicações históricas ou geográficas. O autor está mais preocupado com o impacto das guerras na psique do herói do que nas circunstâncias que levaram ao surgimento dos conflitos políticos.

De fato, a jornada psicológica se mostra mais complexa e recompensadora do que o retrato tímido da geopolítica internacional. Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar jamais aponta o dedo a qualquer nação ou sistema, preferindo lamentar a existência de casos como este. Assim, privilegia um humanismo amplo em detrimento do ativismo ferrenho: o roteiro defende os refugiados sem ofender nem incomodar qualquer nação específica. Esta escolha pode ajudar a compreender a bela recepção do drama mundo afora, inclusive nos países mencionados, que dificilmente se sentiriam afetados pela crítica tão branda. Além disso, a inesperada coprodução entre doze países justifica a ausência de um ponto de vista incisivo, preferindo uma espécia de “versão europeia oficial” a respeito da crise de refugiados — um filme-ONU, para o bem e para o mal.

Mesmo assim, em termos de um mergulho íntimo, o resultado se prova uma bela fusão de linguagens e percursos, combinados com um gênero acessível e uma linguagem próxima ao feel good movie (pelos traços fáceis do desenho, os momentos de descontração do bar gay etc.). Enquanto reconstrução de uma memória afetiva, propensa a recalques, repetições e deturpações dos fatos, esta animação entrecortada por imagens de arquivo em live action encontra um caminho bastante frutífero. Preocupado em atingir o maior número de pessoas à sua mensagem de abertura à diferença, o cineasta oferece uma obra singela em alcance político, porém profunda na tentativa de compreender o outro.

Flee: Nenhum Lugar para Chamar de Lar (2021)
7
Nota 7/10

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