Gyuri (2019)

Viagem à Amazônia

título original (ano)
Gyuri (2019)
país
Brasil
gênero
Documentário
duração
88 minutos
direção
Mariana Lacerda
com
Claudia Andujar, Davi Kopenawa, Carlo Zacquini, Peter Pál Pelbart
visto em
Cinemas

O documentário parte de uma proposta ousada: aproximar duas pessoas por perspectivas paralelas de exclusão social e luta por sobrevivência. De um lado se encontra Cláudia Andujar, fotógrafa suíça que fugiu aos horrores do Holocausto, até se encantar com os Yanomamis no Brasil. De outro lado há Davi Kopenawa, xamã e líder político da comunidade, que briga pela demarcação de terras indígenas e pela preservação de seu povo. Os dois se uniriam pela experiência em comum com genocídios da modernidade.

A cineasta Mariana Lacerda estrutura seu filme em três atos clássicos. Inicialmente, efetua uma única conversa com a artista europeia, num segmento que ocupa cerca de 30 minutos de narrativa. Em seguida, mais 30 minutos são dedicados à difícil chegada da mulher em cadeira de rodas ao povoado isolado na floresta, e ao reencontro com os Yanomami. Já o terço final se consagra ao retorno de Andujar e às conclusões desta pequena jornada íntima.

O longa-metragem se articula em torno de uma quantidade ínfima de cenas. A entrevista de abertura parece ter ocorrido num único dia, com o mesmo cenário, ser permitir o desenvolvimento do raciocínio ao longo do tempo. Julgando pelas filmagens, a estadia da viajante no norte do país também teria sido curtíssima: as discussões a respeito da preservação dos povos originários aparentam ocorrer durante um único instante, quando os protagonistas se sentam ao redor da mesa.

Tamanha economia de cenas provoca efeitos fortes em Gyuri. O projeto desperta a impressão incômoda de não possuir material o suficiente para ocupar a duração desejada, razão pela qual as interações de Anjudar e Kopenawa se diluem e se repetem na narrativa. O encontro ao redor da mesa ocorre em pouquíssimos enquadramentos, o que dificulta a tarefa da montagem em imprimir dinamismo. Lacerda e Paula Mercedes são obrigadas a efetuar incômodos “cortes internos”, de um enquadramento para o mesmo quadro, chamando atenção ao dispositivo e sublinhando a falta de alternativas imagéticas.

O documentário possui um ritmo lânguido, evitando grandes atritos de imagem ou de discurso; além de alterações de tom.

As dificuldades de produção em meio à Amazônia poderiam justificar algumas escolhas apressadas de imagem. No entanto, a mise en scène teima em encontrar ritmo e potência estética até nos instantes em que possui total controle das ações. A longa entrevista de abertura ocorre entre duas figuras sentadas no sofá, em posição inalterada. Apesar da estabilidade, a câmera na mão chacoalha em excesso, pena para encontrar seu enquadramento, perde o foco, não sabe quando alternar entre entrevistador e entrevistada. Aparentemente, horas se passam sem que a direção busque sair do ponto de vista cômodo onde se encontra.

A aparência de certo comodismo se estende à experiência na totalidade. O documentário possui um ritmo lânguido, evitando grandes atritos de imagem ou de discurso; além de alterações de tom. O aspecto etéreo se expande à voz off no início, sobreposta à imagem de nuvens, e às observações distantes de crianças indígenas, como se a câmera os espiasse, sem ousar uma aproximação. O filme flutua sobre o real, ao invés de se colar a ele.

Apesar da viagem difícil ao coração da Amazônia, a artista e sua equipe não buscam produzir cenas particularmente fortes: as trocas entre Andujar, Kopenawa e o missionário Carlo Zacquini soam cotidianas, protocolares. Ninguém evoca grandes passagens, episódios marcantes da memória de um e da outra, e tampouco efetua uma comparação assertiva entre as lutas políticas de ontem e de hoje. A narrativa precisa de letreiros explicativos, ao final, para detalhar aspectos do combate indígena que a imagem não representa por si própria.

Resta uma quantia expressiva de afeto, é claro, entre a mulher e os habitantes locais. No entanto, até o carinho fica aquém dos recursos de linguagem: a foto de Gyuri, que motiva o deslocamento da fotógrafa, nunca é focado ou apresentado a contento ao público; e o processo de organização para tirar uma fotografia em still da mulher com os índios se estende de tal modo que os sorrisos começam a soar encenados, forçados. De modo geral, o dispositivo carece de espontaneidade e das belezas do cotidiano, privilegiando captações plácidas em meio aos Yanomami.

O cinema brasileiro tem se especializado em representações muito potentes de populações indígenas, através de obras como Serras da Desordem, Martírio, Ex-Pajé, Como Fotografei os Yanomami, Piripkura, A Última Floresta, entre outros. Até por isso, espera-se uma incursão mais arrojada nestas populações que ocupam o centro do embate político do Brasil contemporâneo, dividido entre forças ultra conservadoras e grupos progressistas. Espera-se que a raridade do acesso ao povo Yanomami se traduza numa estética incisiva e um discurso pungente. 

Por isso, Gyuri deixa a sensação de se contentar com um resultado modesto em relação à premissa adotada. As informações apontadas pelos personagens relembram o espectador sobre a luta dos índios por direito e respeito no Brasil de Bolsonaro, no entanto, sem trazer dados novos, ou um ponto de vista marcante à questão. Em chave oposta às produções enunciadas acima, o ponto de vista não é oferecido aos índios, permanecendo ora com a senhora europeia, ora distanciado, com a direção. A narrativa se encerra como começou: com a aparência de um sonho, em grandes planos aéreos desconectados da presença humana, após a imagem de uma mulher idosa dormindo. O filme se vira excessivamente aos devaneios para uma discussão tão terrena, em vários sentidos do termo.

Gyuri (2019)
4
Nota 4/10

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