Julgando pelos curtas-metragens da Mostra Mulheres Fantásticas do 14º Cinefantasy — Festival Internacional de Cinema Fantástico, as mulheres se encontram em perpétuo movimento, tanto literal quanto simbolicamente. Os seis títulos que compõem a seleção abordam aventuras íntimas e metafísicas de personagens femininas rumo ao desconhecido. Ao final, acabam descobrindo mais sobre si mesmas, enquanto se impõem face aos ambientes opressores.
Após tantas mostras formadas por obras sombrias e perturbadoras, a exemplo da Mostra Fantástica Diversidade e da Mostra Horror, talvez este seja o espaço para abordagens mais melancólicas e contemplativas. Há exemplos que também se encaixam na categoria terror, é claro, mas ainda assim, desprovidos da vontade de chocar ou provocar sustos. A garotinha do espanhol Gaueko (2022) parte em busca de uma lenda urbana que supostamente ataca crianças na floresta, no entanto, seu destino foge à violência espetacular.
Pelo contrário, a diretora María Monreal opta por uma fábula de descoberta da fase adulta — uma coming of age story. No filme, Ainara acredita em Gaueko como quem ainda nutre medo pelo bicho-papão ou por monstros embaixo da cama. A decisão de se aventurar sozinha pela noite, em busca daquilo que a amedronta, oferece uma visão corajosa e proativa da protagonista face aos perigos. Agora, as cautionary tales, ou fábulas de precaução, não servem apenas a manter garotinhas comportadas dentro de casa, mas a oferecer um desafio palpável para enfrentarem.
Algo semelhante ocorre em outro filme estrelado por uma criança — um drama, desta vez. O colombiano Areia (2022) coloca a pequena Ilana viajando com sua meia-irmã rumo a uma nova casa. No caminho, devem despejar as cinzas do pai recém-falecido, que se ocupava dos cuidados da garotinha até então. A pequena reclama, se rebela contra este destino inevitável, até compreender o poder de decisão que guarda nas mãos (afinal, é ela quem segura a urna com as cinzas). Se a menina espanhola se empoderava pelo enfrentamento direto da morte de si própria, sua equivalente colombiana adquire autonomia através da compreensão da morte alheia.
Em última instância, o fim da vida constitui o motor que une todas essas produções. Alguns teóricos inclusive sugerem que a grande virtude do horror, da ficção científica e da fantasia seria transmitir nosso medo potente da morte e da descoberta de nossa fragilidade humana. Por isso, materializamos em monstros (Gaueko), em fábulas (Triskelion), em distopias apocalípticas (Futuros Amantes), em jornadas irreversíveis (Entre Dois Mundos, Areia) e em maldições milenares (Uma Pequena Morte) a dificuldade de compreender nossa insignificância face à grande ordem das coisas. Memento mori: “lembra-te que morrerás”, sugerem estas histórias.
No brasileiro Futuros Amantes (2022), a perspectiva de fim da vida se transmuta para a fobia de uma espécie de limbo, no qual não se morre, nem se vive plenamente. No ano de 2150, a população reside em galpões, esperando que as condições externas sejam habitáveis novamente. Lorna dorme e acorda, confrontada unicamente ao robô-holograma que a alimenta e com quem conversa. Movida por uma Síndrome de Estocolmo, apaixona-se pelo imaginário de uma masculinidade paterna, cuidadora, atenciosa.
A diretora Jessika Goulart aposta em símbolos padronizados tanto para a sensualidade (a mulher se lavando com um pano úmido esfregado entre as pernas) quanto para a ficção científica (o holograma azulado) e para a distopia (o galpão de poucos objetos corroídos, banhados em luz âmbar). A lógica interna a este futurismo possui suas lacunas fundamentais: O que exatamente se passa no mundo lá fora? Boris vigia apenas Lorna, ou outras pessoas? Na ausência de contextualização, e diante de um desenvolvimento fraco de personagens e da estética, resta ao menos a felicidade de encontrar uma incursão nacional por um gênero raro em nossa cinematografia.
Por sua vez, a jovem congolesa Elikya depende menos da “bondade de estranhos” e do amor romântico para seguir sua jornada. No francês Entre Dois Mundos (2021), de Sofia Gutman, a personagem viaja apesar do namorado, ao invés de graças a ele, ou por causa dele. Crente de que não terá oportunidades profissionais satisfatórias na Europa, decide retornar à África e possivelmente romper o namoro em função disso. A dificuldade de abdicar do relacionamento se converte na incursão por uma floresta mágica e labiríntica, onde a artista se perde para, assim, se encontrar. É uma pena, que, no final, o homem precise acolhê-la e determinar os rumos da dupla (“Nós vamos encontrar uma solução”), mas ainda assim, sugere-se que a heroína não será a mesma após esta experiência.
Esta personagem se opõe a Tina, protagonista do britânico Uma Pequena Morte (2021), de Maria Pawlikowska. Aqui, a garota muda diversas vezes, apenas para permanecer a mesma. Esta morta-viva encontrou a fórmula da vida eterna, sugando a energia dos homens durante o orgasmo. Por isso, multiplica os encontros com jovens que, ao final da relação, terão se transformado em senhores idosos. Como descrever esta perigosa super-heroína (ou anti-heroína, a gosto), senão pela fobia da morte, e pela necessidade de permanecer bela? Há um caráter de lenda ou conto de fadas neste filme que, ironicamente, mais se aproxima da representação do erotismo.
Ora, é curioso que a diretora oponha uma imagem extremamente nítida e polida ao aspecto trash da maquiagem de envelhecimento, no final. Mesmo assim, o conto reafirma este imaginário de mulheres perigosas porque sedutoras — a exemplo de bruxas ou sereias — diante de homens indefesos, cegos de desejo. Tina atualiza o conceito da beleza perversa, agora munida de um telefone celular com aplicativos para namoro e encontro casual. Felizmente, nesta jornada, a garota jamais enfrenta qualquer agressão por parte dos homens, constituindo o único vetor de manipulação e controle do corpo alheio. Emprestando a linguagem da antropologia: quem come quem, afinal?
Outra jovem viajante, encontrando seu espaço face aos homens e ao amor, é a protagonista do belga Triskelion (2021), única animação da lista. A diretora Jessica Raes aposta num stop-motion colorido e exagerado, abraçando o kitsch. Ela se opõe à maioria das histórias, que preferem tons dessaturados e pastéis (Areia, Entre Dois Mundos), escurecidos (Guaeko) ou de pouca variação de cores (Futuros Amantes). A adaptação da lenda celta se aproxima, em certa medida, da fábula tradicional e multicolorida de amor e descoberta de si.
Apesar da linguagem extravagante, este seria o curta-metragem menos subversivo da Mostra Mulheres Fantásticas, compondo um ideal virtuoso, e tradicional, de respeito às diferenças e superação de obstáculos históricos através da força do amor. A história se sucede em ritmo velocíssimo, mencionando mortes, renascimentos e redenções em questão de minutos. Talvez a imagem e as cores cativem mais do que a habilidade narrativa. No entanto, compreende-se a vontade de compor uma seleção múltipla em linguagem e recursos, o que inclui o cinema de gênero junto ao drama tradicional, e o live-action ao lado da animação.
É interessante notar que, com exceção das duas histórias infantis, as quatro mulheres adultas têm suas aventuras determinadas pela relação com os homens. Certo, elas se impõem, às vezes fisicamente, entretanto condicionam sua experiência de vida ao amor e à capacidade de acolhimento destes belos estrangeiros, ou dos namorados de longa data. As crianças se relacionam com familiares mais velhas (a avó, a irmã), enquanto as crescidas espelham suas jornadas nas atitudes tomadas pelos homens. Este seria o retrato da produção contemporânea a respeito de mulheres, e criadas por mulheres, nos universos de fantasia?
A seleção desperta boas reflexões, tanto estéticas quanto discursivas, a partir de uma compreensão variada das potências femininas e das maneiras de se imporem socialmente, seja pela cooperação (Entre Dois Mundos, Triskelion), pela violência (Uma Pequena Morte) ou pela submissão (Futuros Amantes). Com exceção da sarcástica fábula britânica, as demais pregam alguma forma de conciliação entre diferenças, baseada no afeto e na força de vontade. Não por acaso, as instituições sociais (política, comunidade, religião, leis) estão ausente destes universos íntimos. Pensa-se a mulher enquanto essência ou entidade, ao invés de uma figura de cidadania, enfrentando obstáculos específicos relacionados ao gênero.