Triângulo da Tristeza (2022)

A selvageria dos ricos, de novo

título original (ano)
Triangle of Sadness (2022)
país
Suécia, Reino Unido, EUA, França, Grécia
gênero
Comédia
Duração
143 minutos
direção
Ruben Östlund
elenco
Woody Harrelson, Harris Dickinson, Charlbi Dean, Zlatko Buric, Iris Berben, Vicki Berlin, Henrik Dorsin, Jean-Christophe Folly, Amanda Walker, Oliver Ford Davies, Carolina Gynning, Arvin Kananian
visto em
Festival de Toronto 2022

Há algo muito errado na existência de uma classe de pessoas extremamente privilegiadas, capazes de frequentar um cruzeiro de luxo e gastar 28 mil de euros num anel de noivado. Qualquer pessoa com mínima consciência de classe já deve saber disso, porém o diretor Ruben Östlund acredita que seu público não o saiba, precisando que nos explique, di-da-ti-ca-men-te, os horrores do mundo do luxo. O autor também parece estar percebendo agora esta obviedade, com um espanto e uma alegria de quem descobriu a roda.

Em The Square: A Arte da Discórdia (2017), o autor mirava no universo da arte, das galerias, dos museus, e de uma esquerda supostamente progressista, apenas para revelar o quão hipócrita poderiam ser estes indivíduos supostamente esclarecidos. Agora, o alvo se torna ainda mais fácil: são os barões do agronegócio (“Eu vendo merda!”, gaba-se um produtor de fertilizantes), fabricantes de granadas e armamentos, modelos fúteis que tiram centenas de selfies por dia, socialites russas para quem “somos todos iguais”.

O discurso da pretensa equivalência democrática entre os seres (“Somos todos iguais, portanto, não existe necessidade de debater o racismo, certo?”) constitui uma falácia fácil de desarmar, em contrapartida, o texto dedica quase 2h30 a este raciocínio. Entram em cena frases a respeito da igualdade entre os seres humanos, ornadas com pombas da paz; madames ordenando que os funcionários do cruzeiro sejam tratados como ela, e assim por diante. 

A comédia possui o mérito de constatar um problema, porém falha na tentativa de descobrir de onde ele vem, como poderia ser contornado, de que maneira afeta pessoas de diferentes classes, etc. Por isso, seus melhores momentos se encontram no início, quando se arma o tabuleiro do jogo. A sequência com os modelos masculinos possui uma configuração patética, ainda que criada com este objetivo. O diretor aparenta satirizar, uma vez mais, o universo da arte. Ora, uma vez dispostos os peões em suas respectivas casas, a mise en scène simplesmente não sabe para onde levá-los.

Aí reside o maior problema desta extravagante brincadeira: ela permanece no nível do faz-de-conta que, apesar da aparência feroz, revela-se politicamente inofensivo.

Por isso, a estrutura em três partes mais atrapalha do que ajuda na organização do filme: por que começar com dois personagens, elevados a protagonistas, para depois afirmar que são tão importantes quanto os demais? Já o terceiro segmento, e o desfecho “em aberto”, sublinham a dificuldade do autor em concluir sua trama. De fato, Östlund se diverte em colocar os ricos em condição precária, e dispor os pobres, ainda que provisoriamente, em situação de poder. As regras se invertem de maneira simétrica. E depois disso? De que maneira este faz-de-conta afeta, de verdade, o funcionamento de uma estrutura fortemente hierarquizada?

Aí reside o maior problema desta extravagante brincadeira: ela permanece no nível do faz-de-conta que, apesar da aparência feroz, revela-se politicamente inofensivo. Isso seria o equivalente de ver uma criança, com seus brinquedos, imaginando explosões e guerras intergalácticas. O adulto assistindo a essa simulação deve achar engraçada, a suposta rebeldia da criança. Algo semelhante ocorre aqui: os criadores acreditam estar dizendo algo muito poderoso acerca do funcionamento do mundo, enquanto se limitam àquilo que os americanos chamariam de roast: ou seja, a zoeira, a arte de “detonar” o outro pelo prazer de fazê-lo, sem erguer nada por sobre os destroços. Em tempos de redes sociais, muitos confundem este posicionamento com uma argumentação crítica.

Triângulo da Tristeza jamais se preocupa com seus personagens, sejam eles turistas endinheirados ou funcionários humilhados. Por isso, Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean) praticamente desaparecem no terço central, porque o roteiro não sabe como ocupá-los. Entre o segundo e o terceiro capítulos, diversos personagens são dispensados, sem qualquer forma de interesse pelos ausentes. Mesmo aqueles que permanecem, restam na condição de saco de pancadas. No fundo, a diferença desta iniciativa para Jackass não seria tão grande assim — e o exemplar norte-americano ainda demonstra um afeto sincero entre os participantes.

Uma discussão semelhante ocorreu nos anos 1990, quando Todd Solondz apareceu em cena. Parte dos críticos torceu o nariz ao autor, que aparentava humilhar e desprezar todas as pessoas em cena, o que equivaleria num gesto perverso, ao contrário do humanismo sugerido pela denúncia das mazelas sociais. O americano multiplicou seus ataques e elevou o teor dos textos. Foi logo abandonado pelos grandes festivais, até ser esquecido pelos eventos relevantes. Agora, em plena década de 2020, o novo cinema pratica uma forma de rebeldia que parecia extinta com os anos MTV.

Isso não significa que o roteiro não traga momentos engraçados, pelo contrário. Na imensa sala de cinema, repleta de jornalistas do mundo inteiro, as pessoas riam, aplaudiam, e saíam com o contentamento de uma catarse coletiva. “Existe um valor importante em atacar os ricos e poderosos”, um crítico argumentou numa conversa de correr. De fato, os alvos estão corretos, no entanto, a metodologia pode ser fortemente criticada. Michael Moore sempre atacou Bush e os republicanos conservadores, em contrapartida, o fez da maneira mais eticamente contestável que pôde encontrar. Os fins não justificam os meios.

Resta, portanto, o espetáculo do cinismo pelo cinismo, da ridicularização retórica. O que a comédia tem a dizer sobre o estado do mundo? Sobre a baixeza de seus personagens, para além da constatação de sua existência? Triangle of Sadness se encerra exatamente onde começou: na percepção de uma falha grave na organização das estruturas em sociedade. Östlund soa como o pesquisador que começa a tese com uma ideia pronta, e apenas pinça os exemplos que lhe interessam para reforçar uma visão prévia, sem se abrir à possibilidade de descobrir algo no percurso.

A segunda Palma de Ouro entregue ao criador, após The Square, confere ao diretor a validação suprema de estar no caminho certo, ou seja, no humor corrosivo e desgovernado, disparando contra tudo e a todos. Talvez falte um discurso por trás de tamanha picardia, mas quem vai reclamar de ausência de reflexão diante da imagem profundamente explícita e superficial de uma mulher rica vomitando enquanto tem diarreia, ao mesmo tempo? Veremos o que o cineasta aprontará para superar a si mesmo num filme seguinte. A barreira está realmente alta — ou baixa, dependendo do ponto de vista.

Triângulo da Tristeza (2022)
3
Nota 3/10

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