Fale Comigo Verão: O Diário de um Cineasta Amador (2023)

Sem direção

título original (ano)
Fale Comigo Verão: O Diário de um Cineasta Amador (2023)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
79 minutos
direção
Evandro Scorsin
elenco
Jéssica Secco, Vinicius Pereira Coelho, Morgana Orlandi, Evandro Scorsin, Christopher Faust, Estela Basso, Maira Teixeira de Freitas, Albert-Henri Moyrand
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Existe um abismo separando o material bruto deste longa-metragem e a versão apresentada ao público. Partindo de filmagens singelas, o diretor Evandro Scorsin enfeita ao máximo cada cena e tomada. Isso significa aplicar sobreposições, fusões, máscaras, mudanças de matiz, letreiros multicoloridos em diferentes fontes, efeitos de vinheta, efeitos de íris, múltiplas trilhas sonoras, acelerações, câmeras lentas, variações de profundidade de campo. Muitas vezes, todos estes recursos ocorrem ao mesmo tempo, uns sobre os outros, numa saturação impensável de tiques e truques.

Tais elementos produzem consequências determinantes no resultado. Em primeiro lugar, soterram a narrativa e os sentidos decorrentes da mesma. É difícil prestar atenção ao quiproquó de jovens tentando se encontrar entre viagens para Portugal e França, enquanto a imagem treme, chacoalha e pisca. A estética não contribui à trama, procurando a melhor forma de dialogar com o drama dos protagonistas. Pelo contrário, ela se insere apesar da trama. Forma e conteúdo brigam o tempo inteiro: a história modesta recebe uma maquiagem extravagante, como se os estilos e tons pertencessem a obras distintas. Resultam deslocadas, tal qual uma criança que veste as roupas da mãe e calça os sapatos grandes demais, aplicando grosseiramente o batom vermelho sobre os lábios. Há um aspecto cômico e burlesco nesta forma de audiovisual.

Na tentativa de não escolher nada, o diretor abraça todas as opções que se apresentam à sua frente. Oferece, portanto, um cinema sem olhar, sem ponto de vista.

Em segundo lugar, essa intrusão opressiva em pós-produção desperta a aparência de aleatoriedade. Não há um conceito claro por trás de cada utilização das frases “We Can’t Go Home Again”, “Amarga Esperança”, “Bromance”, “Heterotopia”, “Bigger than Life”. As sobreposições, as mudanças de cor, os saltos no tempo e a alternância com a ficção-dentro-da-ficção jamais aparecem em instantes precisos, para ressaltar algum aspecto particular da psicologia dos personagens. Tampouco fica clara a escolha de tantas palavras em inglês para um mergulho na vivência francesa. Faz-se pelo direito e pelo prazer de fazer, em nome de uma liberdade tão instintiva quanto desgovernada.

Isso leva ao problema mais grave de Fale Comigo Verão — O Diário de um Cineasta Amador: a ausência de uma direção, compreendida enquanto escolhas de olhar e de discurso. O papel do cineasta se encontra precisamente na seleção do que pretende mostrar, e de como fazê-lo. Há um leque quase infinito de recursos de linguagem à disposição dos artistas, cabendo compreender que efeito cada um pode provocar. Ora, Scorsin se mostra avesso ao imperativo da distinção entre o close-up e o plano aberto, entre o silêncio e o ruído, entre a imersão e o distanciamento. Na tentativa de não escolher nada, abraça todas as opções que se apresentam à sua frente. Oferece, portanto, um cinema sem olhar, sem ponto de vista, sem preferências, sem autoria.

Seria possível sugerir, em chave oposta, que seu traço autoral se encontraria no excesso kitsch. No entanto, a quantidade de filtros e manipulações, que certamente remetem à produção de imagens em tempos de TikTok e demais redes sociais, estão longe de constituir uma personalização do cineasta, ou uma maneira criada por ele para se expressar. Pelo contrário, traduz-se na padronização desta juventude acelerada, incapaz de se ater a uma imagem ou um estímulo por mais de cinco segundos.

O autor apela a um senso comum da contemporaneidade carente de afeto e atenções, esforçando-se para conquistar a atenção alheia por meio das reiterações, das variações e da estética do espetáculo. A estratégia pode carregar um tom amargo: ao meu lado, na sala de cinema, um jovem rapaz consultava freneticamente suas redes sociais pelo celular durante toda a exibição, da primeira à última cena. Duvido que tenha visto 50% das imagens, ou prestado atenção em metade dos sons. Ironicamente, esforça-se em agradar a um público marcado por taxa de concentração tão limitada que este nem lhe dedica, em retorno, igual atenção.

Logo, a trama pretensamente melancólica a respeito de jovens vivendo em outros países adquire um caráter teen, lúdico, pseudoexistencialista. Os diálogos estão repletos de tiradas como “Você não sente que tem momentos da vida que você não tá no presente, você tá no futuro?”, “Amizade é uma coisa próxima entre duas pessoas, mas de alguma maneira, é passageira”, “O que é casamento? É só uma palavra”, e “Você tem medo, então não vive”. Os artistas realmente acreditam estar transmitindo algo seríssimo a respeito da complexidade da vida adulta. Não percebem o aspecto tragicômico das frases de efeito dignas de um biscoito da sorte.

Por fim, o projeto carrega um caráter ensimesmado, alheio a uma conexão palpável com a sociedade em que se inserem. Os problemas dos personagens vivendo na França são da ordem de “Aqui eu acabo me sentindo preso a uma certa estabilidade”, ou “Não gosto do outono: não faz frio, nem calor”. Trata-se de um cinema burguês, egocêntrico, não apenas pela exposição constante do diretor, sua esposa e suas viagens pelo mundo, mas pela incapacidade de situar estes conflitos em uma ordem mais ampla das coisas. Quando a garota se sente asfixiada em Paris, onde possui poucos amigos, a colega sugere se mudar para Barcelona com ela. Questionando a melhor alternativa profissional, o protagonista recebe como sugestão ir a Portugal. Os deslocamentos e saídas aparentam tamanha facilidade (sendo escolhas confortáveis, ao invés de falta de escolha) que atenuam o peso atribuído a essas dores e incertezas.

O trânsito entre países e situações amorosas resulta inconsequente, movido pelo tédio ou pelo desinteresse naquilo que os locais e pessoas possam oferecer. O roteiro navega entre o casamento, a gravidez, o trabalho de cineastas distantes do emprego dos sonhos, os encontros com belas garotas numa floresta. Mesmo assim, as pessoas estão tristes, insiste o filme, porque lhes falta algo. Mas o filme “não pode ficar pra baixo, não pode ser pesado”, repetem os personagens. Por isso, entram as músicas indie, os letreiros, as sobreposições. O cineasta tenta distrair o espectador do tema, fugindo dele por receio do tom melancólico que parece assustá-lo. Ao final de tanta autopiedade, de tantas plumas e paetês, resta um cinema marcado pelo medo, a insegurança e a incapacidade de se afirmar.

Fale Comigo Verão: O Diário de um Cineasta Amador (2023)
2
Nota 2/10

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