Jackass para Sempre (2022)

O amor entre homens passa pelo falo

título original (ano)
Jackass Forever (2022)
país
EUA
gênero
Comédia, Documentário
duração
96 minutos
direção
Jeff Tremaine
Elenco
Johnny Knoxville, Steve-O, Chris Pontius, Dave England, Wee Man, Ehren McGhehey, Preston Lacy, Davon Wilson, Sean McInerney, Zach Holmes, Rachel Wolfson
Visto em
Paramount+

Os leitores acima dos 30 anos de idade devem se lembrar do furor provocado pelo surgimento da série Jackass na MTV. As esquetes envolvendo pessoas lançadas pelos ares, escorregando ladeira abaixo, fazendo concursos de vômito e chutando os pênis alheios chocaram a moralidade. Ironicamente, os costumes apenas se tornariam castradores de fato (o termo se justifica) uma dezena de anos mais tarde, com a ocupação crescentes das pautas de extrema-direita mundo afora, sustentada sobretudo pelos Republicanos nos Estados Unidos.

Mesmo assim, os pais daquela época gritavam contra as brincadeiras perigosas que certamente estimulariam os filhos a se arriscarem da mesma maneira dentro de casa. Esta seria uma cultura da estupidez e da inutilidade, fornecendo maus exemplos ao jovem adulto infantilizado. Por que, em sã consciência, alguém faria uma panqueca do próprio vômito, comendo-a em seguida, ou aceitaria levar quatro chutes consecutivos no pênis? A motivação dos participantes pela brincadeira sempre provocou um misto de fascinação e asco. 

Talvez este ainda seja o maior atrativo de Jackass para Sempre (2022), lançado cerca de duas décadas após a estreia do conceito. A trupe retorna para encenar novas traquinagens, reencenar outras e introduzir novos participantes ao grupo. Johnny Knoxville, Steve-O, Dave England, Wee Man e Poopies, agora com cabelos grisalhos, sustentam a expressão de orgulho da iniciativa. Para quem acreditava que as brincadeiras constituíam mero gesto de uma adolescência perdida, eles comprovam que acreditam até hoje nos princípios defendidos antigamente.

Isso significa que os personagens estão dispostos a se lançar pelos ares com um canhão; ser picados por cobras e escorpiões; sofrer ataques de águias e ursos; receber inúmeros socos e chutes; ser esmagados por motocicletas; ter sua flatulência explodida sob a água e participar de um novo concurso de vômito. Em particular, seus pênis e testículos serão comprimidos, golpeados, sangrados, chutados, perfurados, eletrocutados, cobertos de mel e carne crua, ou ainda picados por abelhas e estapeados por aparelhos mecânicos concebidos especialmente para a ocasião. A obsessão fálica domina as esquetes.

Após cada estripulia, eles riem, reclamam, provocam uns aos outros. No final, se abraçam: “Eu te amo, cara”. Um dos aspectos mais interessantes desta coletânea assumidamente grosseira e vulgar se encontra na evidente carga de afeto entre os participantes. Mesmo nas raras sequências de “pegadinhas”, somente os atores do grupo se machucam. As demais pessoas nunca serão ridicularizadas, humilhadas nem feridas para o prazer do público — o que já garante um grau de ética superior àquele de programas popularescos como o Caldeirão do Huck, por exemplo.

A brincadeira de violências inconsequentes afeta única e exclusivamente os homens adultos dispostos a tal propósito.

Assim, a brincadeira de violências inconsequentes afeta única e exclusivamente os homens adultos dispostos a tal propósito. Há consentimento explícito: todos são chamados a testemunhar os jogos aplicados aos outros, e quando alguns deles realmente se apavoram (quando um urso está prestes a devorar a mão de Ehren, por exemplo), o dispositivo se interrompe. Eles saem de cada número sangrando, com profundos hematomas, ou ainda costelas quebradas e hemorragia cerebral. Ora, num corte simples da montagem, estarão presentes de volta, saudáveis, entregando-se a novas traquinagens.

Este mecanismo desperta uma curiosa impressão de superpotência, ao mesmo tempo em que os homens são apresentados enquanto sujeitos quaisquer, desprovidos de talentos particulares, de corpos belos, de pênis enormes. Jackass apresenta o triunfo do sujeito comum, do “homem sem qualidades”. O conceito seria exponencializado caso surgisse na época de selfies e TikTok. Vinte anos atrás, no entanto, a filmagem de si próprio era mais difícil, razão pela qual Knoxville e seus colegas representavam o prazer da inconsequência que tantos gostariam de ter, mas não podiam (ou não ousariam) buscar.

No fundo, há um deleite curioso na relação de espectatorialidade. Ao invés de voyeur, testemunhando as ações de longe, o espectador é convidado a se tornar cúmplice das ações. Estamos sempre perto até demais dos corpos golpeados e fraturados, na posição de um amigo suplementar do grupo. Um dos novos participantes inclusive leva o pai às brincadeiras, mas os participantes o tiram de cena quando percebem que a fobia por aranhas seria forte demais ao homem mais velho. Enquanto isso, a câmera se aproxima de um sem-número de pênis flácidos e escrotos em câmera lenta, numa raríssima demonstração de genitalidade não-erótica no cinema comercial. 

Um corpo será apenas um corpo, e um pênis, somente um brinquedo para espremer, chutar ou transformar em Godzilla no teatrinho dos colegas. Todos se apalpam sem parar: Johnny Knoxville agarra o sexo do colega, surpreso com o volume, e outros ajudam um participante a introduzir o escroto num orifício onde deve ser golpeado por luvas de boxe. A virilidade é desprovida de potência penetrante e do poder de sedução em relação às mulheres — a única novata feminina será poupada dos jogos mais físicos, e afastada de qualquer perspectiva de assédio. A força masculina, neste caso, está ligada à tolerância da dor e do medo, ao invés da competição entre machos por domínio. 

Assim, Jackass para Sempre continua o legado de homens testando os limites da morte. As esquetes serão banais ou perigosas, tanto faz — o roteiro atribui peso equivalente a cada uma delas. Eles sabem, com maior ou menor grau de consciência, que podem se ferir de maneira profunda com estes números, ainda que bem elaborados. Médicos ficam de prontidão, mas como impedir o machucado de um touro enraivecido? Ou o dano real provocado por uma ave selvagem atacando um pênis coberto de carne?

Os limites do corpo e da integridade física constituem o núcleo desta experiência impactante e repulsiva em igual medida. Knoxville e seus colegas são ao mesmo tempo corajosos e imbecis, fortes e patéticos. Em sua resiliência e senso de camaradagem, seriam admiráveis; pela irresponsabilidade do gesto e pela compulsão genital e escatológica, aproximam-se de crianças. “Algumas pessoas nunca envelhecem”, afirma o lema da aventura. Existe um caráter saudoso, orgulhoso e preocupante nesta afirmação. 

Ao menos, o documentário cômico, ou o espetáculo circense, como preferirem, elege como alvo de ridículo e de humor os próprios membros: homens mais ou menos jovens, brincalhões, a maioria deles, brancos (com um acréscimo de novatos negros). Todas as identidades, corpos e subjetividades serão ridicularizados em igual proporção, contanto que tenham aceitado previamente se submeter a isso. Muitos humoristas conservadores (homens, brancos, cis, hétero) acreditam que a graça está no outro: o negro, o gay, a mulher, o gordo, o deficiente. A produção da Dickhouse percebe que o humor mais aceitável se encontra em si próprio, voltado a uma masculinidade patética, fragilizada e desnudada, literalmente.

Os jogadores negros, gordos e com nanismo nunca serão ridicularizados por estes atributos. Ri-se daqueles que dominam o discurso, e que têm o poder de criar um canhão gigantesco para uma piada de menos de um minuto, ou de convidar esportistas profissionais para destruírem seus testículos. A irresponsabilidade se dirige a si, não ao outro. O espectador assistirá às trapalhadas no conforto da poltrona ou do sofá, ciente de não correr o mesmo risco experimentado por terceiros. Que estes paladinos de uma infantilidade eterna, de uma violência surreal e desmesurada, sofram as consequências em nosso nome. 

No final, os rapazes se amam, se gostam, se cuidam — à sua maneira, claro. Eles usam máscaras durante a filmagem em plena pandemia de Covid-19, e interrompem a cena quando o diretor de fotografia passa mal, vomitando diante do horror alheio (duas vezes). Na virada do século XXI, talvez Knoxville representasse apenas a juventude “sem futuro” que tanto preocupava os pais. Hoje, aos 51 anos, ele retorna na condição de maestro da orquestra, estabelecendo um afeto entre homens que passa pela violência e pela genitalidade. Quanto mais velhos ficam, mais infantis se parecem, e mais o dispositivo torna lúdico, inventivo, improvável. Por trás de cada machucado, grito de medo ou de surpresa, haverá uma inesperada prova de carinho entre homens.

Jackass para Sempre (2022)
7
7/10

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