Um milionário com problemas de saúde. A esposa consumista, a filha ambiciosa que sonha em assumir a direção da empresa; a filha bastarda que reaparece subitamente; a empregada de moral duvidosa. The Origin of Evil se aventura por um imaginário extremamente conhecido dos suspenses estilo whodunnit, quando uma morte desperta dúvidas a respeito do verdadeiro culpado. A exemplo dos romances de Agatha Christie, todos possuem motivos de sobra para ver Serge (Jacques Weber) sumir de cena o mais rápido possível.
No entanto, o suspense cômico foge à maior parte dos clichês esperados do gênero. Sim, há assassinatos, revelações inesperadas, conchavos entre familiares. Em contrapartida, o diretor Sébastien Marnier se esforça para trazê-los em instantes surpreendentes, ou de uma forma difícil de antecipar. Ao invés de construir a tensão para o espectador por meio do anúncio prévio de planos mortais dos personagens, o longa-metragem prefere revelar as ações apenas quando já estão acontecendo. Troca-se a atmosfera de antecipação por aquela da surpresa e do absurdo.
Esta escolha produz um tom singular de humor. Aposta-se nas pequenas tiradas de desconforto ou ironia, porém no limite em que se poderia ainda acreditar estar num drama. A comicidade provém de ameaças veladas, olhares deslocados de contexto, gestos de simpatia que se traduzem em desprezo. O espectador pode passar boa parte da trama hesitando entre rir das situações ou se preocupar com elas. Isso porque os indícios de perigo e os instantes cômicos são os mesmos, ao invés de se fornecer cenas de suspense e outras engraçadas, alternadamente.
Logo, pode-se dizer que comicidade e tensão crescem juntas, numa progressão cuidadosa e milimetricamente precisa. Os primeiros quinze minutos podem indicar um suspense tradicional, até a direção de arte kitsch, as extravagâncias da mulher idosa ou as respostas da filha começaram a despertar suspeitas quanto ao realismo das situações. Somos levados a questionar, o tempo inteiro, a natureza do que vemos: seria realidade? Uma fantasia, delírio? Conforme descobrimos segredos dos personagens, a trama se torna kafkiana, improvável, delirante.
O filme permite criar zonas cinzentas em termos morais e éticos — é difícil saber por quem torcer neste combate, ou se vale a pena torcer por alguém.
As relações de gênero desempenham um papel fundamental na narrativa. Serge, homem rico e prestes a morrer, é cercado de mulheres vorazes e interesseiras. Novas mulheres se somam ao grupo, apesar de o patriarca nutrir afeto real somente pelos homens — a exemplo do filho Frédéric, rapaz gay que não se identifica com este cenário e foge da mansão familiar. Trata-se de um importante personagem ausente, permitindo levantar uma série de dúvidas, nem sempre esclarecidas. Mesmo as filhas do magnata possuem nomes de homem, como formas de compensar a “fraquejada” do sujeito conversador e grosseiro. Por isso, chamam-se George e Stéphane.
O início da aventura é repleto de mistérios, plantados de uma única vez, porém esclarecidos aos poucos. Quem a protagonista visita na prisão? Por que a irmã se recusa a vê-la? Por que nunca teria encontrado o pai antes? Que motivos teria para esconder o documento de identidade? As perguntas se esclarecem em seu devido momento. O roteiro e a direção gostam de saborear as dúvidas e enigmas, sem desvendá-los cedo demais. Uma vez esclarecidas algumas questões, elas continuam a se desenvolver através de novos elementos plantados a cada vez.
Pense numa brincadeira de Lego, onde cada nova peça introduzida à construção pode modificar o quadrado e transformá-lo num carro, numa torre, num castelo. The Origin of Evil funciona desta maneira intricada e discreta: as peças se modificam, porém, sem trazer elementos externos para ajudar a narrativa. Os mesmos personagens apresentados desde o início serão aqueles restantes no final, com conflitos idênticos. Marnier dispensa o prazer da surpresa improvável, em estilo M. Night Shyamalan: apesar de fantasistas, as soluções restam plausíveis dentro do universo criado.
O elenco se diverte com este texto repleto de ambiguidades. O diretor apela a vários nomes tão confortáveis na comédia quanto no drama e no suspense, caso de Laure Calamy e Dominique Blanc, ambas impecáveis em seus papéis. Elas brincam com o exagero, acentuando algumas falas, atenuando outras. Existe um volume de jogo bastante interessante, que nunca permite ao filme permanecer num patamar cômodo ou previsível. De fato, é difícil antecipar todos os passos oferecidos pelo texto, ainda que, uma vez concretizados, soem verossímeis.
Uma prova deste deslocamento de expectativas se encontra na fragmentação de telas. A montagem opta pela tela que se divide em duas, três, até cinco vezes partes, permitindo ao espectador assistir ao rosto de todos os moradores presentes à mesa de jantar. O recurso se desenvolve de maneira estimulante: as telas crescem ou diminuem, e em determinado momento, flagram uma ausência importante, relacionada a um sofá vazio. Mais do que uma malícia ou gesto de vaidade, o recurso permite explorar diferentes configurações de mise en scène para além do plano e contraplano.
Se existe um aspecto que deponha contra o filme, ele se encontra na conclusão. The Origin of Evil possui pelo menos três boas propostas de encerramento, no entanto, o filme continua após as belas imagens, introduzindo novas e velozes reviravoltas, que não consegue trabalhar a contento. O refinamento da maior parte da narrativa, focada em silêncios e sugestões, se acelera com quiproquós que soam, pela primeira vez, pouco orgânicos. Esta parte transmite a aparência de um diretor tão apaixonado pelo próprio jogo que decide retardá-lo o máximo possível, pelo simples prazer de ver os jogadores em campo.
Ora, estes elementos não prejudicam a experiência de um filme feroz, tanto pelo que mostra quanto por aquilo que sugere. Ao invés da figura das mulheres letais contra o pobre homem, permite criar zonas cinzentas em termos morais e éticos — é difícil saber por quem torcer neste combate, ou se vale a pena torcer por alguém. Conforme as alianças de poder se reconfiguram, Marnier demonstra o talento para comandar a narrativa e a construção das imagens. O ápice desta maestria se encontra numa sequência excelente no hospital, espécie de clímax do horror e da comédia, em simultâneo. É preciso muita ousadia e domínio da linguagem para criar uma cena tão divertida e horrível, em igual proporção.