The Origin of Evil (2022)

"A família é o que existe de pior no mundo"

título original (ano)
L’Origine du Mal (2022)
país
França, Canadá
gênero
Suspense, Comédia
duração
123 minutos
direção
Sébastien Marnier
elenco
Laure Calamy, Doria Tillier, Dominique Blanc, Jacques Weber, Suzanne Clément, Céleste Brunnquell, Véronique Ruggia Saura
visto em
Festival de Toronto 2022

Um milionário com problemas de saúde. A esposa consumista, a filha ambiciosa que sonha em assumir a direção da empresa; a filha bastarda que reaparece subitamente; a empregada de moral duvidosa. The Origin of Evil se aventura por um imaginário extremamente conhecido dos suspenses estilo whodunnit, quando uma morte desperta dúvidas a respeito do verdadeiro culpado. A exemplo dos romances de Agatha Christie, todos possuem motivos de sobra para ver Serge (Jacques Weber) sumir de cena o mais rápido possível.

No entanto, o suspense cômico foge à maior parte dos clichês esperados do gênero. Sim, há assassinatos, revelações inesperadas, conchavos entre familiares. Em contrapartida, o diretor Sébastien Marnier se esforça para trazê-los em instantes surpreendentes, ou de uma forma difícil de antecipar. Ao invés de construir a tensão para o espectador por meio do anúncio prévio de planos mortais dos personagens, o longa-metragem prefere revelar as ações apenas quando já estão acontecendo. Troca-se a atmosfera de antecipação por aquela da surpresa e do absurdo.

Esta escolha produz um tom singular de humor. Aposta-se nas pequenas tiradas de desconforto ou ironia, porém no limite em que se poderia ainda acreditar estar num drama. A comicidade provém de ameaças veladas, olhares deslocados de contexto, gestos de simpatia que se traduzem em desprezo. O espectador pode passar boa parte da trama hesitando entre rir das situações ou se preocupar com elas. Isso porque os indícios de perigo e os instantes cômicos são os mesmos, ao invés de se fornecer cenas de suspense e outras engraçadas, alternadamente.

Logo, pode-se dizer que comicidade e tensão crescem juntas, numa progressão cuidadosa e milimetricamente precisa. Os primeiros quinze minutos podem indicar um suspense tradicional, até a direção de arte kitsch, as extravagâncias da mulher idosa ou as respostas da filha começaram a despertar suspeitas quanto ao realismo das situações. Somos levados a questionar, o tempo inteiro, a natureza do que vemos: seria realidade? Uma fantasia, delírio? Conforme descobrimos segredos dos personagens, a trama se torna kafkiana, improvável, delirante.

O filme permite criar zonas cinzentas em termos morais e éticos — é difícil saber por quem torcer neste combate, ou se vale a pena torcer por alguém.

As relações de gênero desempenham um papel fundamental na narrativa. Serge, homem rico e prestes a morrer, é cercado de mulheres vorazes e interesseiras. Novas mulheres se somam ao grupo, apesar de o patriarca nutrir afeto real somente pelos homens — a exemplo do filho Frédéric, rapaz gay que não se identifica com este cenário e foge da mansão familiar. Trata-se de um importante personagem ausente, permitindo levantar uma série de dúvidas, nem sempre esclarecidas. Mesmo as filhas do magnata possuem nomes de homem, como formas de compensar a “fraquejada” do sujeito conversador e grosseiro. Por isso, chamam-se George e Stéphane.

O início da aventura é repleto de mistérios, plantados de uma única vez, porém esclarecidos aos poucos. Quem a protagonista visita na prisão? Por que a irmã se recusa a vê-la? Por que nunca teria encontrado o pai antes? Que motivos teria para esconder o documento de identidade? As perguntas se esclarecem em seu devido momento. O roteiro e a direção gostam de saborear as dúvidas e enigmas, sem desvendá-los cedo demais. Uma vez esclarecidas algumas questões, elas continuam a se desenvolver através de novos elementos plantados a cada vez. 

Pense numa brincadeira de Lego, onde cada nova peça introduzida à construção pode modificar o quadrado e transformá-lo num carro, numa torre, num castelo. The Origin of Evil funciona desta maneira intricada e discreta: as peças se modificam, porém, sem trazer elementos externos para ajudar a narrativa. Os mesmos personagens apresentados desde o início serão aqueles restantes no final, com conflitos idênticos. Marnier dispensa o prazer da surpresa improvável, em estilo M. Night Shyamalan: apesar de fantasistas, as soluções restam plausíveis dentro do universo criado. 

O elenco se diverte com este texto repleto de ambiguidades. O diretor apela a vários nomes tão confortáveis na comédia quanto no drama e no suspense, caso de Laure Calamy e Dominique Blanc, ambas impecáveis em seus papéis. Elas brincam com o exagero, acentuando algumas falas, atenuando outras. Existe um volume de jogo bastante interessante, que nunca permite ao filme permanecer num patamar cômodo ou previsível. De fato, é difícil antecipar todos os passos oferecidos pelo texto, ainda que, uma vez concretizados, soem verossímeis.

Uma prova deste deslocamento de expectativas se encontra na fragmentação de telas. A montagem opta pela tela que se divide em duas, três, até cinco vezes partes, permitindo ao espectador assistir ao rosto de todos os moradores presentes à mesa de jantar. O recurso se desenvolve de maneira estimulante: as telas crescem ou diminuem, e em determinado momento, flagram uma ausência importante, relacionada a um sofá vazio. Mais do que uma malícia ou gesto de vaidade, o recurso permite explorar diferentes configurações de mise en scène para além do plano e contraplano.

Se existe um aspecto que deponha contra o filme, ele se encontra na conclusão. The Origin of Evil possui pelo menos três boas propostas de encerramento, no entanto, o filme continua após as belas imagens, introduzindo novas e velozes reviravoltas, que não consegue trabalhar a contento. O refinamento da maior parte da narrativa, focada em silêncios e sugestões, se acelera com quiproquós que soam, pela primeira vez, pouco orgânicos. Esta parte transmite a aparência de um diretor tão apaixonado pelo próprio jogo que decide retardá-lo o máximo possível, pelo simples prazer de ver os jogadores em campo.

Ora, estes elementos não prejudicam a experiência de um filme feroz, tanto pelo que mostra quanto por aquilo que sugere. Ao invés da figura das mulheres letais contra o pobre homem, permite criar zonas cinzentas em termos morais e éticos — é difícil saber por quem torcer neste combate, ou se vale a pena torcer por alguém. Conforme as alianças de poder se reconfiguram, Marnier demonstra o talento para comandar a narrativa e a construção das imagens. O ápice desta maestria se encontra numa sequência excelente no hospital, espécie de clímax do horror e da comédia, em simultâneo. É preciso muita ousadia e domínio da linguagem para criar uma cena tão divertida e horrível, em igual proporção.

The Origin of Evil (2022)
8
Nota 8/10

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