Brian Tyree Henry tem sido um dos jovens atores mais versáteis de Hollywood. Em filmes de super-herói (Eternos, 2021), comédias de ação (Trem-Bala, 2022), dramas premiados (Se a Rua Beale Falasse, 2018) e séries aclamadas (Atlanta, 2016 – 2022), ele se destaca pelo trabalho de corpo e voz, passando com facilidade da malícia à ternura, e do humor ao drama.
Essas habilidades são testadas num drama intimista, exibido no Festival de Toronto e atualmente disponível em streaming pela Apple TV+. Em Passagem (Causeway), ele interpreta o mecânico James, vítima de um grave acidente de carro, quando perdeu a perna e provocou a morte de uma criança. Hoje, vive na mesma casa, levando uma rotina entediante, até encontrar Lynsey (Jennifer Lawrence), militar recém-chegada do Afeganistão, onde sobreviveu à explosão de uma bomba. James enxerga na mulher desestabilizada um outro de si mesmo. Aos poucos, as duas pessoas fragmentadas se ajudam no processo de recuperação.
O Meio Amargo conversou em exclusividade com o ator norte-americano, apontado como provável indicado ao Oscar 2023 pelo papel:
James é um personagem traumatizado. Como construiu o luto e a culpa dele?
Não existe abordagem simples para um personagem que sofre de um trauma, é preciso mergulhar a fundo. Como ator, eu gosto de trazer uma parte de mim em cada papel que interpreto. Isso é fundamental para tornar a atuação verossímil, e para construirmos carinho pelos personagens. Com James, eu precisei ter muito cuidado: eu não poderia me basear apenas na dor dele. Não podia dispensar toda a bagagem que ele escolheu carregar consigo a vida inteira para me focar apenas no luto. Quando conhecemos James no filme, ele aparenta ter uma vida comum. Não sabemos de imediato que ele sofreu um acidente grave e foi amputado. Vemos apenas este homem num trabalho banal, dando assistência a uma mulher que traz um carro para averiguação. Nesta cena, percebemos que ele enxerga algo nela que se reflete nele. Ele entende a angústia de Lynsey, que não se lembra de seu número de telefone, nem sabe o que fazer com o carro. James identifica isso, compreende isso. Queria garantir que James teria toda a sua história contada. Não queria que ele fosse uma pessoa que aparece apenas em cenas de tensão para Lynsey. Era importante que ele fosse trimendensional, e que as pessoas pudessem se importar com ele para além da relação com essa garota. Por isso, era necessário mostrar muito do que James viveu até ali.
Eu tinha sofrido algumas perdas, e tudo de que eu precisava, no final do dia, era que alguém me perguntasse se eu estava bem.
Os personagens transmitem muito mais pelo silêncio do que pelos diálogos.
Acrescentamos cenas dos dois conversando sobre o passado, e tomando uma cerveja juntos. Ela apenas pergunta: “O que aconteceu com você?”. Isso é importantíssimo. Seria fácil apenas olhar para o James e pensar que a vida dele está tranquila. Na verdade, ele apenas precisa de alguém que pergunte para ele se tudo está bem. Percebi que isso tinha muito a ver com o que eu atravessava na minha vida pessoal. Eu tinha sofrido algumas perdas, e estava atravessando um momento difícil. Tudo de que eu precisava, no final do dia, era que alguém me perguntasse se eu estava bem. É fácil acreditar que todos somos capazes de pedir ajuda quando necessário, especialmente os atores, cheios de habilidades de performance, mas não sou um ator tão bom no que diz respeito a isso! Senti que algo parecido ocorria com o James. Abordá-lo exigiu muita paciência. Nada é revelado facilmente sobre ele. Na origem de Passagem, nunca se descobria ao certo quem era James fora de sua conexão com Lynsey. Nunca mergulhávamos nos traumas dele, nem no momento presente. Quando tivemos uma pausa forçada no filme, por causa da pandemia, voltamos com uma nova perspectiva. Percebemos que, de todos os personagens relacionados a Lynsey, ele era aquele com o maior impacto, por causa da amizade verdadeira que nasce entre os dois. Juntos, ele se sentem humanos e comuns novamente. Para mim, não teve muita pesquisa em relação ao tema. Eu queria apenas mergulhar no estado presente de James, sabendo que não era possível revelar demais sobre ele, de imediato.
Existe uma responsabilidade particular ao interpretar uma pessoa com deficiência.
Penso em pessoas que sofrem com alguma deficiência, e passam a perceber que existe algum risco de transparecer isso. Quando percebem que você é deficiente, as pessoas te tratam de maneira diferente, às vezes com uma simpatia forçada, uma abordagem meio infantil. Mas tudo o que você deseja é um tratamento comum. Eu queria apenas dissecar todas as camadas do que aconteceu ao James e chegar à essência de quem ele é. Era preciso entender uma coisa: por que ele ficou? Por que decidiu permanecer em Nova Orleans? Isso me ajudou a entender o motivo de permanecer na mesma casa, no mesmo emprego. Como pôde voltar para trás do volante de um carro? Tudo isso foi importante para descobrir quem James realmente era, e quem ele poderia ser a partir do momento em que encontrava alguém novo. Porque Lynsey representa isso para ele: o novo. Ele nem tinha pensado em fazer novas amizades. Então esse foi o ponto de partida para construir este personagem.
Quando percebem que você é deficiente, as pessoas te tratam de maneira diferente, às vezes com uma simpatia forçada, uma abordagem meio infantil. Mas tudo o que você deseja é um tratamento comum.
É interessante que nem o acidente dela, nem o dele, sejam mostrados ao público. Não existem flashbacks, e cabe ao público imaginar o que realmente viveram.
Essa é uma escolha excelente, na minha opinião. Isso permite ao espectador se conectar com quem eles são, ao invés de quem foram. Podemos ver o desenvolvimento e o progresso atual, ao invés de condicioná-los à ligação com o passado. Se indicássemos os traumas de cada um, revelando cenas do acidente que levou à deficiência, ou as perdas dos familiares, teria sido óbvio demais. Quando você faz novos amigos, e atravessa conexões emocionais inéditas, você não quer ser lembrado do passado doloroso. Não acho que a maioria das pessoas consiga lidar com isso. Era melhor que o espectador os descobrisse no instante que atravessam agora, ao invés de ser lembrado daquilo pelo que passaram até chegarem ali. Eles precisam de superação. Essa é a questão do ferimento de Lynsey: ela nunca poderá voltar a quem era antes da explosão. Mesmo que ela passe o filme inteiro tentando recuperar o que tinha, e voltar à mesma vida que tinha antes, sabemos que ela não deveria fazer isso. O mesmo vale para James. Nós os conhecemos quando ele retorna a muitas coisas que não deveria mais estar fazendo. Ele está dirigindo de novo, e mais do que isso, ele conserta carros para as pessoas. Ele ainda vive na mesma casa. Precisamos entender que algumas pessoas atravessam essas etapas como parte do processo de luto. Não consigo julgar moralmente nenhum dos dois.
De fato, eles se recusam a aceitar aquilo que perderam, e insistem em ir contra os conselhos dos outros.
Não sei se as escolhas deles os ajudam ou prejudicam. Mas isso sempre servirá de um lembrete daquilo que perderam. Eu mesmo perdi uma pessoa muito próxima de mim, e passei por experiências parecidas. Perdi a minha mãe e me lembro de ter encontrado uma foto dela, que guardei na minha carteira. Nunca olhava para esta foto, mas me sentia seguro com ela perto de mim. Demorei seis anos para perceber que isso estava me segurando ao passado. Eu precisava seguir em frente. Mas eu tinha medo, porque abrir mão da foto me lembrava que aquela pessoa tinha ido embora, e eu tinha medo dessa lembrança. Com James, eu me perguntava: por que ele sente que esta é a profissão que ele precisa desempenhar? Por que ele acha que não pode sair daquela casa? Por que eu, como ator, sentia que ele precisava superar isso? Acabei revelando muito de mim ao interpretar este personagem. O maior medo ao lidar com o luto é descobrir que talvez você não queira seguir em frente. Há mais em risco quando você admite que não quer abrir mão da sua dor. Quando as pessoas te identificam apenas pela dor que você sentiu, e você supera essa dor, então o que sobra de você? Quando sua identidade foi o luto por tanto tempo, e você termina isso, então quem é você agora? Passagem explora exatamente estas contradições. O que acontece quando você se livra da identidade do luto, e se permite curar e crescer? Existe outra pessoa por trás do trauma. É neste aspecto que encontramos Lynsey e James, quando estão emergindo como novas pessoas.
Espero que, sempre que eu aparecer na tela de alguém, e depois essa pessoa for pegar um copo d’água na cozinha, ela pense por um segundo: “Espero que aquele cara esteja bem”.
Você tem sido apontado como um provável indicado ao Oscar por este papel. Como lida com esta expectativa?
É uma honra, de verdade. Não quero dar uma resposta politicamente correta; é uma honra de verdade. Nós interpretamos personagens e nunca sabemos como eles vão afetar as pessoas. Você apenas faz e tenta trazer o máximo de verdade possível a eles, mas nunca sabemos se esta intenção vai chegar ao público. Mas receber este sentimento me indica que James repercutiu de verdade com as pessoas. Ele teve um impacto real, e é isso que busco em todos os personagens que interpreto. Espero que, sempre que eu aparecer na tela de alguém, e depois essa pessoa for pegar um copo d’água na cozinha, ou entrar no carro para ir embora, ela pense por um segundo: “Espero que aquele cara esteja bem”. Isso vale para todos os personagens. “Será que se ele vai sair dessa?”. Isso significa que foi criada uma empatia, um carinho real por estes personagens. Esses sentimentos me motivam. Quero continuar a interpretar personagens capazes de despertar estes sentimentos. É louco ouvir essas especulações, mas fico muito feliz de saber que as pessoas se sentiram assim.