Causeway (2022)

Uma solidão para compartilhar

título original (ano)
Causeway (2022)
país
EUA
gênero
Drama
duração
92 minutos
direção
Lila Neugebauer
elenco
Jennifer Lawrence, Brian Tyree Henry, Linda Emond, Jayne Houdyshell, Stephen McKinley Henderson, Russell Harvard, Fred Weller, Sean Carvajal, Will Pullen, Neal Huff
visto em
Festival de Toronto 2022

Lynsey (Jennifer Lawrence) acaba de voltar do Afeganistão. Ela trabalhava no exército, quando a explosão de uma bomba no carro onde se encontrava causou danos ao cérebro, além de um grave trauma psicológico. O mecânico James (Brian Tyree Henry), por sua vez, teve outro acidente relacionado aos carros: o veículo onde se encontrava com o sobrinho bateu, e a família perdeu o menino. Em consequência, seu relacionamento acabou e ele perdeu uma perna. Trata-se, portanto, de duas pessoas fraturadas, literal e simbolicamente.

O que o cinema independente prefere fazer, nestes casos, é promover a união entre ambos, de modo que possam espelhar suas fragilidades, sofrer juntos e, aos poucos, ajudarem um ao outro a se reerguer. É estranho como estes dramas, que se consagraram no Festival de Sundance, jamais pensam em retirar ou contornar os obstáculos que perturbam os protagonistas — aqui, no caso, constituem feridas irreversíveis. Assim, o que resta a fazer é aprender a viver com sua tristeza, ou pelo menos, compartilhá-la. Sejamos deprimidos, pobres e abandonados pelo Estado, mas o façamos reunidos.

Surge assim a impressão de uma leve tragicomédia, do tipo que suscita diversos sorrisos de canto e boca e alguns pesares moderados — nunca um choro potente, nem uma crise de euforia. Este cinema de pequeneza se transmite sobretudo nas emoções embotadas, no aceno a revoluções pessoais que jamais ocorrem de fato durante a história, porém se anunciam para um futuro próximo. Os personagens continuam dilacerados, porém agora sabemos que, um dia, fora do filme, talvez não o sejam mais. 

A receita é seguida à risca nesse caso, com a vantagem notável de se retirar o interesse amoroso entre os protagonistas. Lynsey é lésbica, e embora a revelação não surta nenhum efeito palpável na narrativa, ela funciona para afastar a expectativa de uma reparação através do amor romântico. A cineasta Lila Neugebauer encontra outras maneiras, orgânicas e singelas, de incluir personagens surdos, uma menção ao alcoolismo e aos trabalhadores mal-remunerados. Discretamente, promove-se um drama a respeito de indivíduos diversos, sem os reduzirem a representantes de suas identidades ou condições.

A principal qualidade de Causeway reside no gosto pelo retrato cotidiano, avesso a espetacularizações. […] No entanto, esta mesma escolha pode resultar na impressão de um filme morno.

A principal qualidade de Causeway reside no gosto pelo retrato cotidiano, avesso a espetacularizações. Os evidentes problemas de Lynsey com a mãe, o irmão dependente de drogas e sobretudo com o pai são sugeridos, evitando grandes discussões ou catarses. A cineasta foge aos flashbacks da guerra para sensibilizar o público, e tampouco oferece a James um pacote de lembranças recorrentes do acidente. Com o mínimo de detalhamento possível aos acontecimentos prévios, o roteiro permite que os personagens vivam num presente convertido em limbo, posto que o passado está recalcado, e não parece haver perspectivas de futuro.

No entanto, esta mesma escolha pode resultar na impressão de um filme morno ou, pelo menos, pouco memorável. A direção de fotografia trabalha com diversos planos fixos de Jennifer Lawrence observando algum ponto distante, em silêncio, refletindo. Nestes casos, a profundidade de campo se restringe, a luz se torna doce, as cores perdem a força, e a borda da imagem é levemente escurecida. Busca-se uma forma de delicadeza eficaz, ainda que acadêmica e pouco criativa. Opta-se por uma lista de recursos tão funcionais quanto seguros — é curiosa a sensação de se encontrar diante de um projeto que não toma nenhum risco de linguagem.

Os demais aspectos criativos acompanham este registro. A montagem segura os planos durante tempo suficiente para que o silêncio provoque certo desconforto e sugira solidão, mas não numa duração tão estendida que provoque estranhamento, ou dúvidas a respeito da intenção de cada cena. Opta-se por planos e contraplanos, ou ainda planos de conjunto quando os amigos se reúnem na piscina e em frente à casa. O diálogo consiste no principal motor narrativo: sem as falas, o drama seria incapaz de se mover apenas pela construção imagética. Precisa-se que Lynsey e James digam o que pensam, do que se ressentem, para que o espectador o descubra, porque a linguagem, sozinha, não consegue representá-lo.

Há tentativas, minúsculas e quase imperceptíveis, de trabalhar com metáforas. Em algumas cenas, uma fresta de luz atravessa a porta do quarto, e a câmera filma este feixe luminoso por alguns segundos. Adiante, a heroína observa sua sombra projetada no chão. Infelizmente, nenhum destes elementos produz impacto duradouro na trama, seja pela brevidade, seja pela maneira quase aleatória como são dispersos pela montagem, sem efeito de causa e consequência. A diretora busca um registro tão cru e desafetado que pode soar frio, neutro demais. Para evitar o melodrama, cai no estilo simetricamente oposto.

Jennifer Lawrence e Brian Tyree Henry estão competentes, solicitados numa forma de composição linear, de poucas variações. Ela mantém o olhar absorto e a fala dura, que fez sua fama como atriz (algo pertinente neste caso, em se tratando de uma militar que sonha em retornar ao combate). Já ele opta pela fala para dentro, com palavras balbuciadas ou mal-articuladas, demonstrando a dificuldade de expressar sentimentos. O drama funciona em especial como veículo para o talentoso ator comprovar sua versatilidade em gêneros distintos. Para Lawrence, trata-se de um retorno ao estilo de filme que a consagrou (a exemplo de Inverno da Alma, 2010), e do qual se afastou para mergulhar em grandes produções hollywoodianas.

Por fim, talvez nem os produtores (nos quais se inclui Lawrence), nem a diretora devem estimar que estão criando uma obra grandiosa, profunda, arriscada. Este cinema se contenta em ser humano, pequeno, manifestando uma forma de humildade, de virtude pela ausência de ambições mais profundas. Os personagens ganham uma trama focada quase inteiramente em seus rostos e corpos, encarnando sujeitos comuns e anônimos, pertencentes a classes populares, ainda que a obra não tematize esta contextualização de maneira particularmente politizada.

Talvez os diálogos sejam um tanto fracos (em especial, na hora da briga), e o caminho de ambos os personagens soe previsível (a trajetória de aproximação, a briga abrupta e a reconciliação inevitável). No entanto, dentro das perspectivas modestas, Causeway cumpre o prometido, com uma qualidade notável de produção (é difícil apontar problemas flagrantes de ritmo, iluminação, montagem e construção de personagens). A diretora inicia sua carreira em longas-metragens com muito star power e pouca vontade de ser lembrada a longo prazo.

Causeway (2022)
6
Nota 6/10

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