O Deus do Cinema (2021)

Ouro de tolo

título original (ano)
Kinema no Kamisama (2021)
país
Japão
gênero
Comédia, Drama, Romance
duração
125 minutos
direção
Yôji Yamada
elenco
Kenji Sawada, Masaki Suda, Mei Nagano, Nobuko Miyamoto, Keiko Kitagawa
visto em
Cinema

“Deus do cinema, por favor, nos proteja”. A prece vem do proprietário de uma sala de cinema, durante a pandemia de Covid-19. Ele mantém uma sala de rua, destinada a filmes clássicos, e se vê particularmente fragilizado pela crise sanitária. As contas não fecham, e provavelmente terá que fechar as portas — exceto pela eventual chegada de um milagre reparador. A abertura soa naturalista até demais, e próxima dos conflitos políticos e culturais recentes. O fato de se passar no Japão não o isola de uma conjuntura mundial — pelo contrário, seria fácil enxergar a situação brasileira nesta situação.

No entanto, O Deus do Cinema se mostra um filme propenso a sonhos, devaneios, fantasias e romantizações. Tanto na narrativa em primeiro quanto no filme-dentro-do-filme, proposto pelos personagens artistas, o longa-metragem imagina triângulos amorosos impossíveis; prêmios de roteiro que chegam no momento exato para salvar uma família endividada; salas de cinema que se abrem a um único espectador, fora o horário de exibição; amores à primeira vista; golpes do destino; roteiros resgatados décadas depois; amantes reencontrando-se por acaso dentro de uma sala de projeção. Ama-se o cinema como se ama uma garota bela e ingênua, sem nenhuma forma de distinção entre paixões. Este projeto abraça os afetos exagerados, como convém aos cinéfilos inveterados e aos românticos incuráveis.

Aí aspecto reside uma das belezas mais singelas desta pequena comédia: o amor por criadores, em detrimento do valor de sua criação. Pouco importa se fizeram filmes bons ou não.

Felizmente, o diretor Yôji Yamada toma a precaução de não se levar a sério, introduzindo doses generosas de humor autoparódico. Embora a referência narrativa principal seja Frank Capra e A Felicidade Não Se Compra (1946), os paralelos mais evidentes se estabelecem com o Woody Allen de décadas atrás. O autor japonês remete ao norte-americano, capaz de ridicularizar a si próprio enquanto fazia um personagem sair da tela do cinema em A Rosa Púrpura do Cairo (1985). O procedimento de um personagem fictício ganhando vida consiste numa obsessão do diretor fracassado Goh (Kenji Sawada), vivendo num mundo onde Jeff Bridges nunca saiu da tela para encontrar a cinéfila fanática interpretada por Mia Farrow.

Na proposta japonesa, o cineasta brinca carinhosamente com a precariedade dos trabalhadores da arte. O herói abandona as pretensões cinematográficas após desistir do projeto dos sonhos, por insegurança e nervosismo (ele tem uma crise de diarreia no primeiro dia de filmagem, cai do mezanino do estúdio e precisa ser afastado). Nas décadas seguintes, vive de apostas, acumulando dívidas e comprometendo as finanças da filha adulta. O homem envelhecido passa os dias bebendo e fazendo chantagem emocional com os demais para conseguir o dinheiro necessário às corridas de cavalos. Já o colega tímido, que sonha em se tornar crítico de cinema, jamais concretiza esta ambição. A terna moça dividida pela admiração dos dois tampouco dedica o restante da vida às artes.

O roteiro adota uma estrutura convencional de três atos: começa no presente desolador, de dificuldades financeiras e fracasso pessoal; retorna ao passado, para explicar as raízes de tamanha crise; e então salta novamente ao presente, tentando costurar os laços desfeitos. É claro que o projeto sustenta um olhar otimista quanto ao futuro do cinema, à possibilidade de redescoberta de si próprio e de subsistência através do trabalho artístico. A obra pode ser considerada uma “homenagem ao cinema” no sentido de reconhecer suas dificuldades, embora ainda aposte na magia das imagens. O olhar da direção ridiculariza algumas convenções desta indústria, sem jamais desejar subvertê-las. Quer romantização maior do que defender o amor incondicional por uma arte que os trata tão mal?

Um aspecto notável desta aventura reside na crença de um talento enquanto fator perene e atemporal. Caso uma pessoa possua um dom para o audiovisual (seja a direção, o roteiro, a atuação), ela o sustentará pelo resto da vida. Enverga-se nesta virtude um dom divino, espécie de presente que nunca precisa de formação, esforço, nem aprimoramento. Nasce-se com um dom, oferecido generosamente, e de maneira aleatória, pelo deus do cinema mencionado no título. Este pressuposto, fundamental a teorias idealistas tal qual a política dos atores, perpassa a crença da equipe japonesa. Por isso, na narrativa, o neto se revela um excelente roteirista, de modo abrupto, e o senhor de 78 anos resgata o vigor pela criação artística como se os anos não tivessem passado. O talento eliminaria os efeitos do tempo.

Outro ponto atípico nesta ode cinéfila reside em sua inconsequência. Filmes acerca do amor pela sétima arte costumam citar obras importantíssimas, pessoas que teriam mudado os rumos do ofício, atores dotados de capacidades extraordinárias. Em outras palavras, filmes e obras de exceção. Apesar de mencionar o talento, o roteiro prefere se concentrar nos artistas comuns, responsáveis por obras medianas, estreladas por atores assumidamente medíocres. Se o esforço de anos para concretizar um drama não porta bons frutos, paciência: eles riem do fracasso num bar e começam a pensar no projeto seguinte. 

Os flashbacks correspondentes às filmagens passadas revelam diretores excêntricos, atrizes canastronas, problemas de produção (o reflexo da equipe que passa despercebido no olho da intérprete; a atriz que insiste em ir ao banheiro no momento exato do pôr do sol, colocando em risco uma sequência importante). As trapalhadas cinematográficas constituem uma finalidade em si mesma. Yamada não deseja provar que, apesar das dificuldades, criou-se uma obra-prima inquestionável. Pelo contrário, os projetos citados nesta ficção revelam-se pouco memoráveis. Ele privilegia o prazer da criação em si, enquanto processo contínuo, dissociado de seu resultado em tela. Não por acaso, o premiado roteiro de “O Deus do Cinema”, que dá nome ao título, nunca será filmado. 

Neste aspecto reside uma das belezas mais singelas desta pequena comédia física: o amor por criadores, em detrimento do valor de sua criação. Pouco importa se fizeram filmes bons ou não — o longa-metragem os ama simplesmente por sua crença na magia transformadora do cinema. O próprio longa-metragem japonês possui ambições modestas de criação, e jamais visa constituir uma obra primorosa em si. Prefere, em contrapartida, o caráter caseiro, assumidamente amador e afetuoso, de um grupo de amigos e familiares criando juntos.

A comédia dramática se encerra através do encontro entre fantasia e realidade, com a primeira salvando a segunda. Uma personagem enfim sairá da tela, tal qual previam os personagens, porém revestida de uma aura de fantasma gentil. Morre-se pelo cinema, literalmente. Entretanto, não se chega a um paraíso de nuvens e anjos, mas num set de filmagem repleto de profissionais com seus refletores, câmeras, microfones, claquetes. Caso Yamada embutisse qualquer seriedade neste instante, acreditando fornecer uma mensagem profunda sobre a arte e os artistas, atingiria um efeito ridículo. No entanto, o cineasta assume sua cafonice, seu absurdo, na forma de uma grande e saudosa brincadeira. Este tom diminuto e caloroso faz bem à obra como um todo.

O Deus do Cinema (2021)
6
Nota 6/10

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