Los Colonos (2023)

Os selvagens e os índios

título original (ano)
Los Colonos (2023)
país
Chile, Argentina, França, Dinamarca, Reino Unido, Taiwan
gênero
Drama, Histórico
duração
97 minutos
direção
Felipe Gálvez Haberle
elenco
Camilo Arancibia, Mark Stanley, Benjamin Westfall, Alfredo Castro, Marcelo Alonso, Sam Spruell, Mariano Llinás
visto em
Mostra de São Paulo 2023

É curiosa a sensação de assistir a algum filme importante. Trata-se destas raras experiências de assombro dentro da sala de cinema, quando as imagens e sons soam provocadores, e nos desafiam a definir o que estamos realmente vendo, de tão inovadores, ou incomuns em sua abordagem. Ao crítico, ou mesmo ao cinéfilo, representam um desafio para destrinchar, ou pelo menos elaborar, o emaranhado de pensamentos e estímulos que ele provoca.

Poucas obras recentes despertaram reação semelhante no autor deste texto: O Clube, Em Chamas, Sertânia. Los Colonos, de Felipe Gálvez Haberle, se insere no grupo. Não é fácil identificar, a princípio, porque o diretor filma desta maneira, nem onde pretende chegar com seus personagens e ações incomuns. Há um senso de horror (um homem tem o braço decepado nas cenas iniciais) que se acalma e torna latente. Alguns instantes de leveza se intrometem na trama, para então desaparecerem. 

Alude-se com frequência a determinados personagens e situações (o potencial de combate do rapaz mestiço, o enfrentamento ao “rei do ouro”), que teimam em se concretizar nas imagens. Três homens partem Chile adentro, rumo à fronteira com a Argentina, para uma tarefa urgente que parece não ocorrer nunca, sem avançar. O cineasta desenvolve as sensações simultâneas e contraditórias de urgência e imobilidade, de calmaria e terror. O trio pode desenvolver uma amizade, ou talvez se matar, na cena seguinte. 

A história começa a se reescrever, pelo menos a título simbólico, nesta fábula sangrenta e antropofágica da América Latina.

É raríssimo trabalhar de maneira orgânica estes tons tão díspares, sobretudo na chave da gradação. Planta-se o conflito único desde o princípio, no interior desta trinca representativa de protagonistas (contendo a rivalidade entre os brancos e os índios, entre europeus e latino-americanos, entre colonizadores e colonizados), para então crescer, ganhar novas insinuações e movimentos, até finalmente explodir em cena. Uma vez que todas as peças se juntam, descobrimos enfim o formato do quebra-cabeça finamente desenhado pela produção.

Aqui, as capacidades criativas de cada setor se unem com coesão, evitando que uma chame mais atenção do que a outra. A direção de arte nos mergulha na Terra do Fogo de 1901, combinando figurinos de um soldado britânico, de um combatente mexicano-americano e um rapaz pobre, indígena-chileno. Distinguem-se em termos de origem e pertencimento social pelo simples vestuário, dispensando diálogos a respeito. A direção de fotografia provoca um incômodo voluntário pela luz excessiva ou em falta, ou pela angulação de certos planos. Ora revela uma violência distante, ora de maneira extremamente próxima. Num plano, apenas sugere a existência de um estupro brutal, mas no plano seguinte, expõe o mesmo ato em detalhes.

Logo, os sentidos são solicitados e reconfigurados cena a cena, num jogo refinado de manipulação com o espectador. A montagem brinca de apresentar dados importantes, mas depois esquecê-los, ou fingir que não revelará nada, por pudor ou elegância, apenas para retornar, algumas sequências adiante, num espetáculo de sangue. Às vezes, deixa as cenas pacíficas durarem pouco, adotando um ritmo ágil propenso à ação (a batalha de virilidades na fronteira Chile-Argentina), ora faz o calvário de uma mulher indígena durar uma eternidade. A equipe possui plena consciência dos efeitos desejados com cada cena.

Assim, nunca apresenta nenhuma sequência fraca, arrastada, desigual. As atuações se mantêm coerentes dentro de um rico sistema de olhares e pontos de vista: primeiro, os rostos são percebidos em planos bem distantes, nas planícies, típicos do Western; em seguida, num close-up claustrofóbico diante da barbárie, tal qual o cinema de horror. Os nomes mostrados em vermelho-sangue indicam o quarto principal por seus apelidos pejorativos, cuja importância será revelada em tempo oportuno. Em oposição ao maniqueísmo, todos os homens sobrevivem como podem, desempenhando atos reprováveis em partes distintas da aventura. A citação inicial, de Thomas Moore, nos lembra o dia em que ovelhas devorarão os próprios homens.

A premissa sugerida pelo roteiro — a necessidade de criar uma rota segura de escoamento das ovelhas do proprietário das terras — constitui mera desculpa para promover uma viagem terra adentro. O deslocamento obriga os protagonistas a enfrentarem um microcosmo das desigualdades de classe, gênero e etnia na virada do século XXI. Neste universo de masculinidades opressoras, caberá as mulheres as cenas mais marcantes, seja à frente do piano, seja resistindo à agressão explícita, ou insinuada, dos colonizadores durante uma noite sombria. 

Assim, desenha-se uma obra profundamente violenta, ainda que as cenas de agressão explícita sejam curtas e pontuais. Entretanto, Haberle alterna o visto e o sugerido, valorizando uma atmosfera de perigo permanente. Ele promove um cruzamento entre o drama, o suspense, o filme histórico, o horror e o faroeste, enquanto gêneros tradicionalmente masculinos, baseados na catarse. Aplica as ferramentas propícias a cada gênero, transitando da verossimilhança ao absurdo (“É apenas um braço!”, afirma o sujeito mutilado, desdenhando da própria dor). 

Los Colonos se encerra num questionamento a respeito da função do cinema diante das tragédias alheias. Neste sentido, formaria uma belíssima dupla com Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese — outra obra na qual a imagem de indígenas, captada em fotografias, possuía um valor social imenso, assim como a capacidade de iniciar guerras. Aqui, a proposta de “união nacional”, cinicamente lançada por representantes do governo, inclui o embelezamento e o falseamento de costumes autóctones. 

A montagem saberá exatamente de qual lado ficar, e qual ponto de vista preservar, até o final da projeção. O resultado transparece uma maestria raríssima de mise en scène, demonstrando o fascínio pela violência dos homens, sem espetacularizar, nem nos convidar a ter prazer e diversão com o genocídio indígena. Ao mesmo tempo, aproxima-se de maneira respeitosa e progressiva dos povos originários, nada vitimizados, nem reduzidos em sua importância. Estes vencerão, ainda que simbolicamente, no que diz respeito ao controle da imagem. Rumo à conclusão, serão eles que dirigirão a cena, ao invés das vozes oficiais do Estado. A história começa a se reescrever, pelo menos a título simbólico, nesta fábula sangrenta e antropofágica da América Latina.

Los Colonos (2023)
9
Nota 9/10

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