Otto (Tom Hanks) quer morrer. Ele amarra uma corda no teto da sala, mas o equipamento se desprende na hora do enforcamento. Tenta se jogar na linha do trem, mas outro suicida se antecipa e cai nos trilhos antes dele. Cogita se isolar no carro e inalar monóxido de carbono, porém é surpreendido por vizinhos, que o obrigam a interromper a execução. Otto quer morrer, mas o mundo ao redor não deixa.
A comédia dramática parte desta noção, inerentemente religiosa, de que não somos donos de nossa própria existência. Como não opinamos sobre o nascimento, tampouco teríamos o direito de intervir na nossa morte, porque cada um teria um propósito maior, escolhido por alguma força dos cosmos. É interessante que, apesar do ambiente cristão, o filme evite incluir a religião na mistura.
O herói, neste caso, seria um sujeito deprimido, rabugento, que passa os dias controlando a vida dos vizinhos e garantindo que ninguém suje ou perturbe, o pequeno vilarejo onde se encontra. Para o roteiro, o mau-humor se deve ao luto jamais superado da querida esposa. Revoltado contra a ordem das coisas, o sujeito apaixonado teria se transformado num controlador obsessivo, ansioso para se juntar à amada nos céus (novamente, é incrível que Deus seja retirado de cena neste contexto).
Chamado de “velho” por todos, e descrito como um sujeito no fim da vida, o protagonista talvez precisasse ser interpretado por alguém de idade superior aos 66 anos de Tom Hanks. (Embora na obra sueca de 2015, também adaptada do romance de Fredrik Backman, o protagonista fosse interpretado por um ator de idade equivalente àquela do norte-americano). No entanto, de cabelos embranquecidos e rosto emburrado, ele capricha na sugestão de um homem que envelheceu mentalmente, mais do que no corpo.
Produtor executivo, junto à esposa, o artista oferece a si próprio um veículo para brilhar na seara de bons sentimentos ao qual está acostumado, ainda que normalmente interprete os sujeitos generosos, ao invés dos resmungões. A trama lhe permite transitar do profundo pessimismo ao otimismo progressivo, rendendo-se ao carinho recebido à revelia, imposto pelos pitorescos moradores da rua sem saída — todos sorridentes, barulhentos, intrusivos e caricatos.
A narrativa sustenta a tese de que Otto deseja encerrar a vida por falta de amor. Assim, ao receber afeto forçado pelos vizinhos (tal qual um medicamento intravenoso), repensaria o destino trágico de sua existência.
A narrativa sustenta a tese de que Otto deseja encerrar a vida por falta de amor. Assim, ao receber afeto forçado pelos vizinhos (tal qual um medicamento intravenoso), repensaria o destino trágico de sua existência. Todo suicida poderia ser poupado de uma tragédia por meio de sorrisos, abraços, comida quentinha entregue à porta de casa num refratário de plástico, e um gatinho com frio, que insiste em entrar na casa do misantropo. O mundo conspira para ajudar o anti-herói, existindo para ele.
O diretor Marc Forster concebe um microcosmos multicultural e inclusivo, numa única rua coberta de neve. Os vizinhos são uma nova família latina (que cozinha, faz filhos e quebra piñatas com frequência, como se supõe destes estrangeiros); um garoto transexual rejeitado pela família (cujas falas e conflitos se limitam unicamente à identidade de gênero); um casal negro abusado pelos vilões do momento, os funcionários de uma agência imobiliária.
Face à diversidade desta nova América, o homem branco, conservador, heterossexual e avesso à modernidade protesta, mas acaba abraçando esta alegria contagiante. Alguns espectadores podem enxergar nesta fábula pouco sutil um apelo à diversidade, em moldes “por que não podemos todos ser amigos?”. Outros talvez percebam o conservadorismo latente no fato de o homem branco ser indispensável na rotina destas pessoas vitimizadas e atrapalhadas, que não conseguem viver sem a ajuda do vizinho branco e grosseiro.
Por essa lógica, precisamos uns dos outros, e tanto os preconceituosos quanto as minorias sociais teriam igual direito de existir na sociedade — um paralelismo falso e problemático, como a própria situação do Brasil em 2023 atesta sem grande dificuldade. De qualquer modo, Otto logo aprenderá a falar espanhol, dará aulas de direção, apoio jurídico aos vizinhos e consertará máquinas de lavar sem ser requisitado. Forster e Backman sonham com um retorno à ideia de sociedade enquanto uma grande vizinhança, onde todos cuidam de todos.
Para os fãs do melodrama tradicional, O Pior Vizinho do Mundo possui ingredientes fartos: há inúmeras mortes visíveis e mencionadas; paralisias; mal de Parkinson; doenças cardiovasculares crônicas; abortos espontâneos; pais rejeitados pelo filho e filho rejeitado pelos pais; animalzinho morrendo de frio; criancinha pedindo para brincar. Ao menos, estas peças são distribuídas com certa parcimônia, sem apelo imediato ao choro do espectador a cada cinco minutos. (Mas espere só para descobrir a catarse no final).
Aqui, a morte se equilibra com nascimentos, quase obrigatórios, visto que o otimismo é associado à figura da mulher grávida, de energia inesgotável e sorriso incondicional. Ela representa a vida, e Otto, a morte. Adivinha quem se impõe neste xadrez? Felizmente, Mariana Treviño é uma ótima atriz cômica, de ritmo e malícia exemplares para romper com o bom-mocismo da direção e o aspecto plácido demais das composições ao redor.
A intérprete rouba as cenas em que aparece, e cada vez que o roteiro desvia atenção para outros personagens, reflete a falta de Marisol na trama. As trapalhadas físicas do núcleo latino equilibram o tom de autoajuda que acaba dominando o conjunto, até se impor por completo no terço final.
Ora, face à atriz mexicana, Tom Hanks escala o próprio filho, Truman Hanks, para interpretá-lo nos flashbacks. A escolha parece lógica, exceto pelo fato de que o jovem ator ainda precisa crescer muito nas artes dramáticas para estrelar um projeto desse porte. As cenas da juventude de Otto ao lado de Sonya (Rachel Keller) remetem ao estereótipo do comercial de margarina, repleto de pessoas lindas, sorridentes e bondosas, beijando-se ao pôr do sol e apanhando amorosamente os livros que o outro deixou cair no chão. Estes trechos constituem, com folga, a parte menos inspirada e interessante do longa-metragem.
Resta uma leitura otimista sobre a vida em comunidade, repleta de ensinamentos a respeito do amor ao próximo. A conclusão terá diversas frases de efeito, cartas afetuosas lidas pelo autor, em off (até quando o drama utilizará esta ferramenta desgastadíssima?), além da crença de que o amor termina por triunfar, mais cedo ou mais tarde. O aspecto possivelmente manipulador, ou previsível, não parece ter importado à maioria dos críticos que, na sessão de imprensa, choravam copiosamente ao final da sessão.
Para os espectadores em busca deste expurgo emocional pouco crítico, porém bastante solidário e empático, O Pior Vizinho do Mundo cumpre a função de apelar ao senso de comunidade — em torno das lágrimas, do afeto, da crença no outro. Em outras palavras, um diálogo com emoções, ao invés da razão ou da consciência política. Os espectadores do cinema, reunidos na experiência coletiva da sala escura, seriam os receptores ideais desta educação sentimental.