Love Lies Bleeding: O Amor Sangra (2023)

Bodies Bodies Bodies

título original (ano)
Love Lies Bleeding (2023)
País
EUA, Reino Unido
gênero
Terror, Romance, Suspense
duração
104 minutos
direção
Rose Glass
elenco
Kristen Stewart, Katy O’Brian, Ed Harris, Dave Franco, Jena Malone
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Em pleno Festival de Berlim, após a exibição de tantos filmes que soam antiquados ou voltados ao tempo passado, chega a ser um alívio encontrar um projeto como Love Lies Bleeding: O Amor Sangra, de Rose Glass. A produção dos estúdios A24 condensa não apenas as demandas sociais e políticas dos nossos tempos, mas também uma maneira específica de filmar e se comunicar. Trata-se de uma iniciativa que percebe a linguagem TikTok e a influência no audiovisual após as redes sociais, mas não se rende a nenhuma destas ferramentas na tentativa de soar palatável.

Sobretudo, a cineasta compreende que o grande palco da política, no século XXI, reside no corpo. Ali se condensam as identidades, as subjetividades, o papel contemporâneo do homem, da mulher e de demais gêneros ou sexualidades. O corpo condensa as preocupações centrais da pauta de costumes (o aborto, o racismo, as homoafetividades e transafetividades), da economia (o consumo, o trabalho, a segurança, a saúde) e da organização comunitária (as hierarquias sociais, os novos contornos da luta de classes).

De certo modo, estas preocupações se refletem no longa-metragem, que não possui nenhum traço de didatismo, nem se assemelha a uma tese. Pelo contrário, funciona plenamente enquanto suspense, ação e trama policial para quem desejar vê-lo assim. Duas mulheres marginalizadas, com empregos precários, envolvem-se em uma série de crimes que as empurram a seguir adiante. As comparações com Thelma e Louise (1991) serão inevitáveis, ainda que a proposta de 2023 ouse escancarar tudo aquilo que ganhava uma representação lúdica nas mãos de Ridley Scott.

Glass abraça com prazer as ferramentas do cinema de horror e da fantasia, capazes de representar de maneira potente as situações de injustiça.

Glass registra o corpo no esplendor e na decadência, na atividade e na máxima fragilidade. Ela filma uma abundância de personagens sangrando, vomitando, comendo, urinando, defecando, gozando. Para o bem ou para o mal, estes organismos estão produzindo — trata-se de máquinas intermináveis de potência e de ação. Por isso, o encontro entre uma aspirante a halterofilista, a atendente lésbica de uma academia e um mafioso que multiplica os cadáveres pela cidade desperta uma cruel dinâmica de competição.

Aqui, as mulheres sofrem diversos tipos de ataques: verbais, físicos, humilhações, abusos sexuais. Precisam se prostituir para conseguirem um emprego; injetam anabolizantes para um concurso; sofrem nas mãos dos maridos agressivos. Elas revidarão com os próprios punhos, na chave da vingança. Ao invés de esperarem por um herói, ou torcerem que a justiça se faça naturalmente com o tempo, demonstram a força de desferir socos e produzir seus próprios cadáveres. 

Trata-se de uma dinâmica de gênero (as mulheres contra os homens), de classe (os subalternos contra os patrões abusivos) e de raça (Katy O’Brian revidando contra o ideal patético do americanismo branco ilustrado por Anna Baryshnikov). Em oposição à dominação masculina através de armas, comprovam a capacidade de revidar por meio de outros mecanismos e estratégias. Para isso, Glass abraça com prazer as ferramentas do cinema de horror e da fantasia, capazes de representar de maneira potente as situações de injustiça.

Love Lies Bleeding encontra seus melhores momentos nos delírios estéticos e narrativos. Nas três ou quatro sequências em que a diretora se permite um frenesi de sexualidade e gore, ela resgata tanto o imaginário das mulheres assustadoras do cinema de terror (A Mulher de 15 Metros, de 1958, vem à mente) quanto as experiências em body horror, permitindo que os corpos anabolizados adquiram uma aparência, literalmente, deformada. Se a jovem bissexual é tratada como monstruosidade, então que faça desta acusação seu superpoder. Aquilo que a diferencia da norma a torna especial e mais forte. 

Por extensão, a montagem associa o atraente e o repugnante: em uma sequência, a jovem que acaba de desentupir um vaso sanitário entupido recebe um beijo forçado, antes mesmo de se limpar. Um lixo repleto de cinzas e gemas de ovo é associado ao chocolate derretido no corpo da protagonista, para ser lambido durante o sexo. A masturbação no sofá se conecta à comida nojenta do gato, e ao sexo forçado num carro. O vômito se converte num parto; e a garota infantil possui os dentes extremamente amarelados, insistindo para beijar e ser beijada. O humor nasce destas conexões inesperadas, confrontando estímulos que não costumam caminhar juntos num filme “de bom gosto”. 

O elenco traz excelentes contrastes de estilo e tom. Kristen Stewart compõe sua personagem da maneira que lhe é peculiar, entre falas gaguejadas, olhares de soslaio e um corpo oscilando entre a timidez e o desajuste. Esta composição enfrenta bem o estilo cru de Katy O’Brien, atriz de olhos doces, corpo musculoso e expressões mais contidas que a colega. Ao redor de ambas, o mundo adquire um caráter grotesco, circense, destinado a representar aquilo que ambas combatem. Ed Harris, Dave Franco e Anna Baryshnikov compõem figuras voluntariamente asquerosas.

Este mundo de contrastes se reflete numa estética igualmente extrema ao revelar a noite e os espaços públicos, tipicamente masculinos (a academia, as avenidas, um cânion). Estes cenários possuem cores fortíssimas ou sombras profundas, sem exceção. Já a casa de Lou (Stewart) se converte num respiro de sanidade, em suas cores bege, marrons e intensidades comedidas. Apesar de sua simplicidade, este lar transparece um acolhimento da individualidade, além de um abrigo contra a loucura reinante porta afora. A luz vermelha introduz a brutalidade, é claro, mas de maneira fantástica: não existe nenhuma fonte de luz diegética desta cor, já que a pós-produção prefere tingir a imagem inteira de um vermelho artificial e incômodo.

Love Lies Bleeding possui mais uma infinidade de ícones e signos discretos, porém significativos: as propagandas recorrentes contra cigarro e drogas na rádio; as menções ao erotismo pela umidade onde vivem larvas, a aparência vaginal de uma gruta letal, etc. Glass consegue incorporar exageros e absurdos de maneira orgânica, narrativa. Os músculos gigantescos do monstro / super-heroína se desenvolvem paulatinamente; o recurso fantástico do clímax se preparava em pequenos indícios associados às injeções em Jackie (O’Brien). 

Para a cineasta, cinema de gênero não significa aleatoriedade, nem o direito de fazer qualquer coisa em nome da liberdade criativa. O resultado se mostra profundamente coeso em termos conceituais, e complexo na discussão a respeito das potências do corpo feminino. Ela condensa a criatividade permitida pelo horror e a fantasia, com um respeito à construção de personagens e aos sentimentos, mais comuns no drama (apesar de essenciais aos bons projetos de terror). Glass constrói uma obra plenamente ciente de seus efeitos e de seu alcance. Sabe o que dizer, para quem, e como. Revela-se, assim, uma artista tão instigante esteticamente quanto inteligente em suas ferramentas de comunicação.

Love Lies Bleeding: O Amor Sangra (2023)
9
Nota 9/10

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