Em pleno Festival de Berlim, após a exibição de tantos filmes que soam antiquados ou voltados ao tempo passado, chega a ser um alívio encontrar um projeto como Love Lies Bleeding: O Amor Sangra, de Rose Glass. A produção dos estúdios A24 condensa não apenas as demandas sociais e políticas dos nossos tempos, mas também uma maneira específica de filmar e se comunicar. Trata-se de uma iniciativa que percebe a linguagem TikTok e a influência no audiovisual após as redes sociais, mas não se rende a nenhuma destas ferramentas na tentativa de soar palatável.
Sobretudo, a cineasta compreende que o grande palco da política, no século XXI, reside no corpo. Ali se condensam as identidades, as subjetividades, o papel contemporâneo do homem, da mulher e de demais gêneros ou sexualidades. O corpo condensa as preocupações centrais da pauta de costumes (o aborto, o racismo, as homoafetividades e transafetividades), da economia (o consumo, o trabalho, a segurança, a saúde) e da organização comunitária (as hierarquias sociais, os novos contornos da luta de classes).
De certo modo, estas preocupações se refletem no longa-metragem, que não possui nenhum traço de didatismo, nem se assemelha a uma tese. Pelo contrário, funciona plenamente enquanto suspense, ação e trama policial para quem desejar vê-lo assim. Duas mulheres marginalizadas, com empregos precários, envolvem-se em uma série de crimes que as empurram a seguir adiante. As comparações com Thelma e Louise (1991) serão inevitáveis, ainda que a proposta de 2023 ouse escancarar tudo aquilo que ganhava uma representação lúdica nas mãos de Ridley Scott.
Glass abraça com prazer as ferramentas do cinema de horror e da fantasia, capazes de representar de maneira potente as situações de injustiça.
Glass registra o corpo no esplendor e na decadência, na atividade e na máxima fragilidade. Ela filma uma abundância de personagens sangrando, vomitando, comendo, urinando, defecando, gozando. Para o bem ou para o mal, estes organismos estão produzindo — trata-se de máquinas intermináveis de potência e de ação. Por isso, o encontro entre uma aspirante a halterofilista, a atendente lésbica de uma academia e um mafioso que multiplica os cadáveres pela cidade desperta uma cruel dinâmica de competição.
Aqui, as mulheres sofrem diversos tipos de ataques: verbais, físicos, humilhações, abusos sexuais. Precisam se prostituir para conseguirem um emprego; injetam anabolizantes para um concurso; sofrem nas mãos dos maridos agressivos. Elas revidarão com os próprios punhos, na chave da vingança. Ao invés de esperarem por um herói, ou torcerem que a justiça se faça naturalmente com o tempo, demonstram a força de desferir socos e produzir seus próprios cadáveres.
Trata-se de uma dinâmica de gênero (as mulheres contra os homens), de classe (os subalternos contra os patrões abusivos) e de raça (Katy O’Brian revidando contra o ideal patético do americanismo branco ilustrado por Anna Baryshnikov). Em oposição à dominação masculina através de armas, comprovam a capacidade de revidar por meio de outros mecanismos e estratégias. Para isso, Glass abraça com prazer as ferramentas do cinema de horror e da fantasia, capazes de representar de maneira potente as situações de injustiça.
Love Lies Bleeding encontra seus melhores momentos nos delírios estéticos e narrativos. Nas três ou quatro sequências em que a diretora se permite um frenesi de sexualidade e gore, ela resgata tanto o imaginário das mulheres assustadoras do cinema de terror (A Mulher de 15 Metros, de 1958, vem à mente) quanto as experiências em body horror, permitindo que os corpos anabolizados adquiram uma aparência, literalmente, deformada. Se a jovem bissexual é tratada como monstruosidade, então que faça desta acusação seu superpoder. Aquilo que a diferencia da norma a torna especial e mais forte.
Por extensão, a montagem associa o atraente e o repugnante: em uma sequência, a jovem que acaba de desentupir um vaso sanitário entupido recebe um beijo forçado, antes mesmo de se limpar. Um lixo repleto de cinzas e gemas de ovo é associado ao chocolate derretido no corpo da protagonista, para ser lambido durante o sexo. A masturbação no sofá se conecta à comida nojenta do gato, e ao sexo forçado num carro. O vômito se converte num parto; e a garota infantil possui os dentes extremamente amarelados, insistindo para beijar e ser beijada. O humor nasce destas conexões inesperadas, confrontando estímulos que não costumam caminhar juntos num filme “de bom gosto”.
O elenco traz excelentes contrastes de estilo e tom. Kristen Stewart compõe sua personagem da maneira que lhe é peculiar, entre falas gaguejadas, olhares de soslaio e um corpo oscilando entre a timidez e o desajuste. Esta composição enfrenta bem o estilo cru de Katy O’Brien, atriz de olhos doces, corpo musculoso e expressões mais contidas que a colega. Ao redor de ambas, o mundo adquire um caráter grotesco, circense, destinado a representar aquilo que ambas combatem. Ed Harris, Dave Franco e Anna Baryshnikov compõem figuras voluntariamente asquerosas.
Este mundo de contrastes se reflete numa estética igualmente extrema ao revelar a noite e os espaços públicos, tipicamente masculinos (a academia, as avenidas, um cânion). Estes cenários possuem cores fortíssimas ou sombras profundas, sem exceção. Já a casa de Lou (Stewart) se converte num respiro de sanidade, em suas cores bege, marrons e intensidades comedidas. Apesar de sua simplicidade, este lar transparece um acolhimento da individualidade, além de um abrigo contra a loucura reinante porta afora. A luz vermelha introduz a brutalidade, é claro, mas de maneira fantástica: não existe nenhuma fonte de luz diegética desta cor, já que a pós-produção prefere tingir a imagem inteira de um vermelho artificial e incômodo.
Love Lies Bleeding possui mais uma infinidade de ícones e signos discretos, porém significativos: as propagandas recorrentes contra cigarro e drogas na rádio; as menções ao erotismo pela umidade onde vivem larvas, a aparência vaginal de uma gruta letal, etc. Glass consegue incorporar exageros e absurdos de maneira orgânica, narrativa. Os músculos gigantescos do monstro / super-heroína se desenvolvem paulatinamente; o recurso fantástico do clímax se preparava em pequenos indícios associados às injeções em Jackie (O’Brien).
Para a cineasta, cinema de gênero não significa aleatoriedade, nem o direito de fazer qualquer coisa em nome da liberdade criativa. O resultado se mostra profundamente coeso em termos conceituais, e complexo na discussão a respeito das potências do corpo feminino. Ela condensa a criatividade permitida pelo horror e a fantasia, com um respeito à construção de personagens e aos sentimentos, mais comuns no drama (apesar de essenciais aos bons projetos de terror). Glass constrói uma obra plenamente ciente de seus efeitos e de seu alcance. Sabe o que dizer, para quem, e como. Revela-se, assim, uma artista tão instigante esteticamente quanto inteligente em suas ferramentas de comunicação.