A Esposa de Tchaikovsky (2022)

Amor de perdição

título original (ano)
Zhena Chaikovskogo (2022)
país
Rússia, França, Suíça
gênero
Romance, História, Biografia
duração
143 minutos
direção
Kirill Serebrennikov
elenco
Alyona Mikhailova, Odin Lund Biron, Miron Fedorov, Yuliya Aug, Filipp Avdeev, Andrey Burkovskiy, Natalya Pavlenkova, Natalia Polenova, Nikita Pirozhkov, Varvara Shmykova
visto em
Cinemas

Certo dia, Antonina Miliukova (Alyona Mikhailova) se apaixona. Assim, subitamente. Ela percebe o rapaz durante poucos minutos numa festa, e nem sequer conversa com ele. No entanto, está decidida a se tornar sua esposa, a protegê-lo dos ataques e dos rumores, conservando-se fiel a este único amor até o fim de seus dias. Manda cartas, matricula-se na escola onde ele leciona, e pede que aceite um pedido desesperado de casamento. Senão, tirará a própria vida. Ninguém duvida da seriedade da afirmação.

O diretor Kirill Serebrennikov decide abordar a história real do relacionamento fracassado do compositor Pyotr Tchaikovsky pelo viés dos grandes romances de antigamente — literários, eternos, trágicos. Não há nenhuma leveza ou alegria no amor, muito contrário. Uma vez detectado, este afeto se assemelha a uma maldição, uma doença grave da qual não se cura mais. Antonina parece condenada ao sofrimento em virtude da devoção — unilateral e repudiada — que nutre pelo famoso compositor. 

Os criadores estão cientes de que, em pleno ano de 2022, tal relacionamento soa absurdo. Alguns enxergarão uma veia cômica, anacrônica, absurda. No entanto, os letreiros iniciais se justificam, solicitando nossa boa vontade ao anteciparem as possíveis críticas: os acontecimentos “refletem a realidade da época”, e o divórcio era extremamente difícil de obter. É compreensível a suspeita diante de uma obra que comece se desculpando, ou se justificando para ser aceita. No entanto, aqui, o autor pede menos clemência do que uma espécie de recuo histórico. Ele não confia muito em nossa capacidade de interpretação, apelando a recursos pedagógicos — justificáveis ou não, a gosto do freguês.

A tragédia da heroína é acentuada pelo fato de o músico ser gay. Ele nunca o confessa com estas palavras, nem mesmo os demais personagens. “Homossexualidade” e termos correlatos jamais serão pronunciados, até porque a Rússia contemporânea proíbe e persegue o que considera a “propaganda da homossexualidade”. No entanto, todos ao redor do homem sabem de sua predileção por rapazes. Ele possui um círculo de amigos gays, e planeja escapadas com belos homens em trens, no vagão ao lado do seu. Fala-se em moços “invertidos”, com certa “inclinação”. A censura da trama, situada no final do século XIX, reflete aquela praticada pelo governo russo no século XXI.

É irônico que uma linguagem normalmente empregada para enaltecer o amor romântico seja utilizada para representar a hipocrisia dos casamentos de fachada. 

Uma das vantagens desta abordagem consiste em enxergar o fracasso do relacionamento na forma de um peso a todos os envolvidos. Nem Tchaikovsky, nem a esposa Tchaikovskaia estão contentes. Os irmãos do artista temem pela honra da família. Os familiares da recém-casada se inquietam pelas coisas que se dizem, nos bastidores, a respeito do compositor. Ela sofre por amar demais; ele sofre por não amar nem um pouco. Logo, o homem se torna tirânico, grosseiro, agressivo. Ela se faz ainda mais doce, tolerante, disposta a acatar os acessos de fúria dele. Hoje, este relacionamento seria chamado de tóxico, passivo-agressivo, abusivo. Entretanto, tais termos não se aplicavam aos costumes daquela sociedade.

Por um lado, Serebrennikov aposta nas ferramentas clássicas dos amores idealizados. Estão presentes as luzes elegantes e frias, o formato em scope para valorizar os espaços e atribuir uma roupagem clássica à composição. A trilha sonora embala os encontros sempre que possível, em variações de piano e cordas, sublinhando as tristezas e rancores espalhados por todas as cenas. É irônico que uma linguagem normalmente empregada para enaltecer o amor romântico seja utilizada para representar a hipocrisia dos casamentos de fachada. 

Por outro lado, o diretor permite que metáforas e escapismos fantásticos representem o estado de espírito de Antonina. Nas ruas, fora dos confortáveis palacetes e apartamentos, há uma infinidade de indivíduos abandonados, passando frio. São pessoas com deficiências, prostitutas, e sujeitos marginalizados em geral. Eles pedem uma esmola, porém os pedestres se fazem surdos aos suplícios. O recurso permite dar um passo atrás e enxergar a sina da protagonista de maneira mais ampla: se os problemas dela envolvem amar e ser amada, aceitar ou recusar uma confortável pensão, lá fora há pessoas com dificuldades de sobreviver.

Em geral, esta colagem representa uma visão pessimista e sombria da Rússia. Fecham-se os olhos aos dilemas estruturais para manter as aparências e sustentar a visão de um país opulento. O diretor evita acentuar a genialidade de Tchaikovsky ou sentir pena deste homem. Nenhuma composição completa será interpretada ao piano, ou explorada na trilha sonora. É fundamental que o protagonismo permaneça junto à mulher, para quem o amor basta por si próprio. Como Antonina não se preocupa com a música do marido, o filme também não a valoriza.

Assim, a obra foge habilmente dos retratos de gênios, acostumados a perdoar falhas de caráter e comportamentos autoritários em nome da boa arte que nos proporcionam. O músico abandonou e manipulou a esposa, além de condená-la a uma vida de humilhações. Por isso, não saberemos se produziu obras valiosas ou não — tal elemento está fora de questão pela abordagem do diretor. Eventuais fãs de Tchaikovsky precisarão procurar por conta própria as informações desejadas a respeito de seu trabalho. O homem nunca compõe, toca nem rege nas imagens. “Eu não sabia da fama dele”, insiste a pobre Antonina, tentando se fazer interessante ao círculo gay do marido.

O filme cresce quando introduz metáforas tristes e delirantes da condição feminina. Uma galeria de homens musculosos é oferecida à esposa pela família do músico, em troca de deixar o sujeito gay em paz. “Escolha qual deles quiser”, declara o representante legal do compositor. Adiante, num delírio inspirado na dança contemporânea, ela perambula por um apartamento triste e escuro, cercada pelos corpos nus dos homens que desprezou. Antonina, mulher-fantasma, esposa de ninguém, prende-se até os últimos minutos à honra de seu amor solitário. Em última instância, ela ama amar, e tal disposição à entrega pessoal lhe basta.

Muitos espectadores torceram o nariz para o resultado, alegando se tratar de uma obra pomposa demais, muito reverente aos códigos dos romances literários. Surpreende que não tenham se detido sobre a ironia das imagens, a provocação política por trás da aparência de normalidade. É uma pena que não tenham destacado a beleza de um piano amarrado e retirado do prédio pela janela, assemelhando-se à silhueta de um cadáver encoberto. Ou que não se atenham à condição tragicômica de Antonina, “viúva de marido vivo”, e àquela do filme, um lamento sobre a homossexualidade produzido pelo país que a persegue. Há um farto e indigesto banquete a digerir nesta proposta.

A Esposa de Tchaikovsky (2022)
8
Nota 8/10

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