Talvez os estudiosos do cinema devessem dedicar tanto tempo aos filmes bons quanto aos filmes ruins. As pesquisas acadêmicas e a cinefilia se entregam com vigor às obras-primas mundiais sem pensar que poderiam aprender igualmente ao se debruçarem sobre as produções péssimas.
Não pense naqueles títulos com uma ou outra atuação deslocada, uma conclusão insatisfatória, uma direção de fotografia imprecisa, e sim nas obras espetacularmente ruins. Um tipo de produção desgovernada, sofrível, inacreditável em seu resultado. De John Carter: Entre Dois Mundos (2012) a Cats (2019), os acidentes de percurso nos ensinam bastante a respeito da indústria cinematográfica.
O Portal Secreto representa um destes casos excepcionais. A sessão provocou espanto no autor deste texto: nenhuma cena parecia minimamente profissional. Atuações, fotografia, roteiro, montagem, ritmo, tom, figurinos, cenários, discurso, efeitos visuais, metáforas, uso de referências, exploração de tempo e espaço. Nada atinge o nível para ser considerado apenas fraco.
Trata-se de uma experiência única, ora chocante pelas falhas e absurdos, ora irritante ou entediante. Sim, vários colegas brasileiros apreciaram o resultado, é importante reconhecer. No Rotten Tomatoes, uma das ferramentas mais (mal) exploradas pela indústria enquanto sinal de qualidade, o consenso é bastante positivo. Esta é a beleza da diversidade crítica, não? Permitam então um ponto de vista divergente.
O espectador é lançado num universo compreensível a todos os personagens, mas cujos segredos são ocultados de nós. Eles sabem porque estão se comportando de maneira absurda. O público, não.
O longa-metragem dirigido por Jeffrey Walker, baseado no primeiro livro da série criada por Tom Holt, navega pelos códigos familiares das fantasias infantojuvenis. Há traços bastante reconhecíveis de uma dezena de títulos e sagas populares: Harry Potter, Animais Fantásticos, A Convenção das Bruxas, Gremlins, Alexandre e o Dia Terrível, Horrível, Espantoso e Horroroso, e até traços de Questão de Tempo e Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças. Os nomes de Christoph Waltz, Miranda Otto e Sam Neill despertam a atenção.
No entanto, o projeto nunca apresenta seus personagens, nem o espaço onde circulam, muito menos as regras específicas para o funcionamento desta magia atípica. O espectador é lançado num universo próprio, plenamente compreensível e justificável a todos os personagens, mas cujos segredos são ocultados de nós. Eles sabem porque estão se comportando de maneira absurda. O público, não.
A secretária da empresa lambe um grampeador. Um homem pode invadir o sonho do protagonista e fazer suas orelhas crescerem. Duendes vivem no subsolo de um prédio, fazendo sabe-se lá o quê. Sophie (Sophie Wilde), que nunca gostou de alcaçuz, delicia-se com uma bala “tão alcaçuzinha”. Van Spee (Rachel House) forma palavras em seus cabelos mágicos, ainda que não se consiga ler ao certo o que os termos queiram dizer. A empresa produz algum produto indefinido.
O herói Paul (Patrick Gibson) recebe a tarefa de procurar bauxita num mapa — bastando aproximar a sua mão para sentir o magnetismo crescente no papel, é claro. Rosie (Jessica De Gouw) chama de filhos alguns homens mais velhos do que ela. Numa praça da cidade, os personagens possuem a tarefa importante de fazer um rapaz cair na fonte, para despertar uma história de amor com a menina que lê um livro sobre homens caindo na fonte.
O roteiro é composto por estas incongruências que se sucedem numa velocidade vertiginosa, durante 116 minutos. Estes elementos poderiam possuir valor, despertar identificação e nos fazer torcer pelos personagens, caso fossem contextualizados. O espectador precisaria entender o motivo de sua existência, que conflito representam, quais os limites para sua exploração. Ora, os criadores acreditam que o aspecto lúdico e pitoresco fale por si próprio, limitando-se às esquetes de um Castelo Rá-Tim-Bum sob o efeito de ácido.
O maior símbolo da falta de propósito se encontra no portal secreto do título. Humphrey (Christoph Waltz) e Dennis (Sam Neill) estão loucos para colocar as mãos neste instrumento poderosíssimo, decidindo, então… deixá-lo sob os cuidados de um estagiário que mal conhecem, e no qual possuem confiança limitada. Uma vez encontrada, a porta apenas leva o rapaz a qualquer cidade do mundo, onde passa tardes deliciosas passeando e se banhando. Ninguém na empresa nota a sua ausência. Apenas no final, explica-se que “quem fecha a porta, fica com o portal”, pois este detalhe não possuía relevância até então. Depois, a porta será pouco e mal utilizada, quase esquecida rumo à conclusão. Nem o flerte com Sophie, nem a rivalidade entre diretores da instituição se desenvolvem a contento.
Os personagens, condicionados às ações inexplicáveis de terceiros, somente reagem de maneira impulsiva à chuva de estímulos ao redor. A condessa Judy (Miranda Otto), Van Spee e Casimir (Chris Pang) perambulam sem motivo nem objetivos, e terminam exatamente onde começaram. Paul, “o escolhido pelo destino” para resolver um imbróglio empresarial, precisa provar o seu valor, encontrar a saída para um labirinto sem saídas e resgatar um personagem de quem o próprio roteiro parecia ter se esquecido.
Logo, o dilema do portal secreto é abandonado em prol da busca do contrato no qual Sophie vende a sua alma. Depois, abandona-se o documento para se consagrar ao labirinto escuro num cubo preto. Então, à descoberta dos duendes e sua relação com os demais funcionários. O espectador se depara com esta corrida maluca ao longo da qual os corpos caminham, correm, andam, dão ordens. No entanto, jamais sabemos para onde vão, com qual intuito, correndo qual risco caso não executem corretamente uma tarefa.
O Portal Secreto transforma a magia em gadget aleatório. Há bebês dragões circulando pelos corredores, porque sim. Uma infinidade de impressoras produz contratos quaisquer. Objetos de escritório se tornam hologramas de pessoas mortas, porque assim desejaram os autores. O cachorro-que-roubou-o-cachecol reaparece, talvez visando agradar as crianças. O apartamento pequeno, a falta de dinheiro e de perspectivas no início são perdidos de vista, pois o protagonista nunca ganha uma vida social, afetiva, familiar. Enquanto corpo desalmado, desloca-se de um corredor ao outro, de uma aventura à seguinte.
É difícil pensar numa produção recente tão massivamente ruim quanto esta. Os atores estão perdidos na indecisão de tons e de direção (pobres Christoph Waltz e Miranda Otto). Nem os efeitos visuais transmitem alguma forma de autorialidade. Não há uma única cena interessante em termos de composição, enquadramentos, movimento de câmera, relação entre os personagens ou o espaço. Não há ambiguidades, subentendidos, ou ainda qualquer discurso acerca da magia, dos duendes, das portas, da confiança em si ou de qualquer outro tema aparentemente relacionado à trama.
A distribuição brasileira se esforça em afundar o barco naufragado. Decide nacionalizar as frases em inglês — mas só algumas delas. De repente, os personagens australianos encontram estranhas portas com palavras em português: “Candidatos”, “Somente duendes”. No entanto, outros avisos permanecem na língua original. Alguns textos se encontram em versão nacionalizada num plano, mas no contraplano, voltam ao inglês. Na abertura, os créditos dos profissionais se encontram em português, mas alguns foram esquecidos pelo tradutor, a exemplo de um “VX Supervisor”. Aparentemente, nem se revisou a cópia lançada em salas.
O resultado se encerra como uma obra em jam session, fruto de inúmeras vontades contrárias, opiniões opostas, e objetivos (artísticos e comerciais) indefinidos. Ainda há ganchos para as sequências, caso os ganhos justifiquem uma continuação. Pelo menos, não resta dúvida de que a experiência será memorável, ao contrário de tantas obras medíocres e esquecíveis. Alguém deveria estudar este filme em particular, destrinchando seus processos, escolhas, sua filmagem e finalização. Há muito a se aprender por trás de um encontro de centenas de sensibilidades artísticas diferentes, resultado num magnum opus da baixa qualidade.