Visões de Ramsés (2022)

O invasor invadido

título original (ano)
Goutte d’Or (2022)
país
França
gênero
Drama
duração
98 minutos
direção
Clément Cogitore
elenco
Karim Leklou, Jawad Outoui, Elyes Dkhissi, Yilin Yang, Djibril Bouhadi, Malik Zidi, Ahmed Benaïssa, Elsa Wolliaston, Chakib Mokhtari, Ayoub Lafdal, Losseni Sanoko, Lacina Sanoko, Rehena Mondal, Laure Duthilleul, Elan Ben Ali
visto em
Cinemas

No bairro onde mora, Ramsés (Karim Leklou) é um homem respeitado. Esse suposto vidente atende dezenas de pessoas por dia, que esperam durante horas numa salinha até terem a chance de se comunicar com os mortos, através do dom do herói. Os frequentadores são obrigados a retirar joias, celular, cintos. “É por causa do magnetismo”, explica a assistente. Segurando a foto dos falecidos nas mãos, escutam palavras de reconforto, além de informações precisas que apenas o morto poderia deter.

O espectador logo descobre se tratar de um esquema bem-sucedido de mentira e manipulação. Conseguindo acesso ao celular dos clientes, o pretenso médium descobre fotos de família e publicações nas redes sociais. Isso é o suficiente para citar algum objeto precioso ou uma viagem marcante na vida do ente querido, conquistando assim a confiança do cliente. Com tudo o que revelamos na Internet a respeito de nós mesmos, o caminho se torna bastante fácil ao protagonista. O dinheiro continua entrando para ele e seus associados, num esquema sólido.

À primeira vista, esse homem francês de origem magrebina controla o ambiente, as pessoas e o bairro. Ele atrai pequenas multidões, e ninguém parece suspeitar do golpe. A polícia jamais se encontra em seu encalço — este não é um filme sobre o desmascaramento de criminosos. Andando pelas ruas, ele é reconhecido por todos, invejado por muitos. O rapaz de aparência simples e camisetas gastas, sem qualquer forma de vaidade, domina os negócios que lhe correspondem bem.

No entanto, conforme cresce no ramo, o homem que invade secretamente a vida das pessoas tem sua vida invadida em retorno. Alguém quebra a janela da cozinha, entra no apartamento e rouba pertences. Uma gangue de meninos consegue acesso ao imóvel pelo terraço do prédio. Os vizinhos o conduzem à força a reuniões. Depois, exigem um encontro com o pai de Ramsés. Quanto mais o vidente expande sua atuação, mais ele atrai toda a forma de milícias e intimidações para si. Existe um caráter curiosamente cíclico nas ações, que retornam de maneira mágica ao protagonista.

O drama navega com desenvoltura entre o realismo social e o realismo fantástico. A narrativa se afasta da mera denúncia do calvário social.

A noção de “mágica” é plenamente assumida pelo diretor Clément Cogitore. Em primeiro lugar, existe a ficção da comunicação com os mortos. Num mundo bruto, repleto de assaltos, drogas e violência num dos bairros mais pobres de Paris (a Goutte d’Or, que justifica o título original), a possibilidade de um afago do além, uma frase de consolo dos pais e avós no céu, se torna uma oferta irresistível. Existe uma vontade de crença pelos habitantes locais — uma busca pela ludicidade alternativa aos subempregos e rotinas precárias.

Além disso, na exata metade da narrativa, Ramsés encontra o cadáver de uma criança. Assim mesmo, de repente, sem estar procurando. Descobre o corpo numa montanha de lixo, relativamente escondido dos olhares públicos. O que o teria atraído àquele local? Nem o rapaz sabe responder. O longa-metragem permite que o charlatanismo seja questionado: o falso médium teria, afinal, algum poder de comunicação com os mortos? Alguma habilidade sobrenatural, permitindo a atração ao menino vitimizado pela gangue vizinha? Ele seria menos impostor do que imaginamos?

https://youtu.be/UWRBP1bJUc0

O drama navega com desenvoltura entre o realismo social e o realismo fantástico. Por um lado, a câmera na mão acompanhando as andanças de Ramsés, colada à sua nuca, agitando-se freneticamente pelos corredores e avenidas, lembra uma forma de cinema direto que os franceses dominam muito bem. Por outro lado, o apelo a fenômenos inexplicáveis, incluindo coincidências e conveniências (sempre assumidas como tais) sugere que exista algo além daquilo que Ramsés, a câmera e o espectador possam enxergar. Há uma compreensão macro e distinta dos eventos, porém ela se encontra fora de quadro, longe do nosso alcance. Por que os trabalhadores da construção não encontram o cadáver exposto? Como nenhum cliente suspeita das falcatruas do médium? Por que a janela da cozinha continua aberta, e facilmente acessível, após tantas intrusões?

Aos poucos, a narrativa se abre a leituras metafóricas, afastando a interpretação de uma mera denúncia do calvário social reservado aos mais pobres. O pai de Ramsés, também místico, e possivelmente delirante (ou seria ele o sujeito consciente do grupo?), se comunica em versos, em profecias, explicando que o filho seria um “prisioneiro da tristeza”. “Sou um mentiroso e um ladrão. Não fui um filho do reino. Eu pertenço ao vento e à noite”, explica o personagem central, numa fala tão metafórica quanto pertinente ao contexto específico. 

Afinal, são estes meninos marginais, no vento frio da noite, que praticam seus crimes e movem a narrativa, na tentativa de se emancipar do controle das famílias e das polícias. Há uma ideia de liberdade, de fuga das leis, de vida sem regras, habitando todas as figuras centrais, recorrendo a diferentes formas de furtos e estelionato. Ramsés converte-se no Ícaro que, ao voar alto demais, queima as asas. Por isso, torna-se dócil, carinhoso com os meninos que roubam sua casa, e protetor do garoto falecido. Existe alguma espécie de compensação por tamanha inconsequência ao se transformar, inesperadamente, em figura paterna dos vivos e dos mortos.

O cineasta conduz esta jornada de (auto)descoberta com uma segurança distante, quase fria. Ramsés constitui um sujeito sem grandes qualidades nem defeitos, um “homem comum” por definição. Leklou o compõe com gestos bruscos em oposição ao olhar doce, ou com confiança nas falas apesar da postura corporal derrotada, introvertida. Há muitas contradições no rapaz, construído no avesso do fetiche pela miséria e pelo mundo cão. Pelo contrário, a obra demonstra impressionante ternura por todos os envolvidos, evitando julgamentos morais.

No final, Visões de Ramsés se encerra como uma tragédia de costumes, um suspense policial sem policiais envolvidos. No bairro repleto de imigrantes ilegais e filhos de estrangeiros, fala-se mais em árabe do que em francês, e ninguém se importa de fato com os problemas diários. Os moradores regulam-se, portanto, a si próprios. Estabelecem suas milícias, suas punições, sua forma alternativa de vigilância. Vivem como podem, recorrendo a trambiques e biscates. A trama se encerra quando tudo e nada é resolvido na vida do herói. É impressionante como um final feliz pode ser, ao mesmo tempo, tão triste.

Visões de Ramsés (2022)
8
Nota 8/10

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