Tudo começou como uma proposta de comunicação em tempos de pandemia. Fernanda Pessoa, cineasta e pesquisadora do cinema experimental, chamou a amiga Chica Barbosa, que vive nos Estados Unidos, para trocar vídeo-cartas. Aos poucos, as gravações inspiradas no trabalho de diretoras experimentais cresceu até se transformar num longa-metragem, selecionado no 11º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba.
Vai e Vem (2022) foi apresentado na noite de abertura do evento, mostrando o potencial criativo e provocador das linguagens experimentais para representar as políticas ferozes de dois governos: o Brasil sob Bolsonaro e os Estados Unidos sob Trump. Leia a nossa crítica. O Meio Amargo conversou com as criadoras a respeito desta iniciativa, que será distribuída comercialmente nos cinemas pela Boulevard Filmes:
Vocês já enviavam os vídeos uma à outra na intenção de utilizá-los para um filme?
Fernanda Pessoa: O filme começa com um convite meu à Chica. Sugeri que a gente lesse um livro juntas, e depois se comunicasse em vídeo-cartas. Conversei com ela a respeito no começo da pandemia, esse período de suspensão temporal quando a gente ainda tinha muito tempo livre nas mãos e não sabia o que fazer com isso. Mandei para a Chica um pdf do livro Women’s Experimental Cinema, que consiste em dezesseis artigos sobre o trabalho de cineastas experimentais, especialmente relacionadas à vanguarda norte-americana. Não queria ficar enfurnada, lendo sozinha, então a convidei para ler comigo, e a gente se comunicaria a partir desse livro, com vídeo-cartas, cada uma inspirada em uma dessas cineastas. Logo de cara estabelecemos algumas regras para as coisas não ficarem soltas, como as regras das três semanas de prazo — eram duas, mas expandimos um pouco. Assim, a gente não se perderia, nem deixaria o projeto desandar. A ideia era pesquisar, e formalmente colocar em prática o que líamos sobre essas mulheres. Era um exercício teórico prático, mas só depois a gente veria o que faria disso. Tínhamos mais regras: cada vídeo precisava ter entre três e seis minutos, por exemplo.
Chica Barbosa: Era interessante porque a gente estudava junta cada uma dessas cineastas, em conjunto. Depois, cada uma incorporava as referências à sua maneira. Depois das cinco primeiras cartas, a gente sentiu que era um olhar norte-americano e eurocentrista. Sentimos uma falta de diversidade: não tinha sentido nos focar apenas em cineastas norte-americanas, sem ter uma cineasta latina, uma cineasta negra. Então já modificamos para incluir outros nomes. No sexto vídeo, colocamos a argentina Narcisa Hirsch, e iniciamos um processo de procurar outras artistas. Chegamos em novos nomes, incluindo uma diretora mexicana e a Paula Gaitán, porque queríamos uma diretora brasileira. Com quatro cartas, eu pensei: “Será que esse material não pode virar um curta?”. Montamos, e fez sentido para nós, com este período pandêmico, dialogando com os espaços interno e externo. Inscrevemos no IDFA por acaso, porque estava dentro no prazo. Depois continuamos o processo. Quando o filme entrou, decidimos realmente fazer um curta. Isso nos permitiu acreditar que realmente renderia um filme. Aí fomos expandindo os temas, até virar um longa.
Depois destas pesquisas, diriam que as diretoras mulheres têm uma abordagem diferenciada à linguagem experimental?
Fernanda Pessoa: Sim, mas isso é algo difícil de explicar. As mulheres foram colocadas num papel dentro do cinema como um todo. Elas têm menos oportunidades, fazem menos filmes, e são colocadas na caixinha do “olhar feminino”. As cineastas experimentais passam pela mesma coisa: quando a gente vê o que o Jonas Mekas e o Stan Brakhage escreviam na época sobre a Maya Deren e a Marie Menken, diziam: “É sensível, é bonito, é caseiro”. A gente percebe que, formalmente, elas têm traços muito específicos, o que não necessariamente esteja ligado a ser um olhar feminino. Mas elas respondiam às questões da sua vida, questões essas que ainda estão presentes na nossa vida hoje. Elas lidam muito com o espaço doméstico, onde sempre tentam colocar as mulheres. No nosso caso, a gente estava presa no espaço doméstico por causa da pandemia. A subversão do espaço doméstico aparece muito no trabalho delas, não por serem mulheres, mas porque culturalmente são postas nestes lugares. As condições históricas, sociais e políticas fazem com que tenha outra maneira de lidar com o experimental. Às vezes, o cinema experimental delas era muito mais ousado do que aquele dos homens, que não precisavam lidar com estas questões.
Chica Barbosa: A gente via muito o contraste no retrato do corpo. As limitações do corpo feminino não são colocadas por nós, mas por uma sociedade patriarcal. Vimos que muitas dessas cineastas têm formas particulares de lidar com esta imagem. A Marie Menken, por exemplo, trabalha o corpo dilacerado pela maternidade. Você pode falar de um universo particularmente feminino, por questões da política e da sociedade. Além disso, muitos desses filmes produzidos por elas foram pouco comentados: você não encontra muitas críticas, discussões, e nem tem acesso fácil. Dificilmente vai ter uma mostra de cinema experimental que as inclua. Muitos desses nomes a gente nem sequer tinha ouvido falar. Isso, para nós, já era algo a compreender e abordar. Por que só agora a gente começou a ter acesso a essas coisas?
Fernanda Pessoa: A gente repete o jargão político dos anos 1970: “O pessoal é político”. Mas no caso dessas cineastas experimentais, esta questão fica clara: são obras muito pessoais, e muito políticas. A vida íntima das mulheres é atravessada pela política, assim como a nossa.
Como esta política da linguagem dialoga com a política partidária no Brasil e nos Estados Unidos?
Fernanda Pessoa: A Chica mora nos Estados Unidos, a meca dessas imagens que fingem que não são políticas. Essa forma hegemônica de contar histórias, o cinema narrativo e dominante, finge não ser político. Ele faz de tudo para esconder sua ideologia. Olhar para o cinema experimental e para as mulheres que fazem cinema experimental é uma forma de desvelar isso e revelar que a forma é política. Forma é conteúdo, e ética é estética. Isso se torna claro diante dessas obras.
Chica Barbosa: O cinema experimental pode ter essa impressão de algo abstrato, distante, que não se aproxima das pessoas. Esse projeto nos trouxe essa questão: como fazer um filme experimental acessível às pessoas? Afinal, essa diversidade de formas ainda pode se comunicar com o público. O formato que a gente escolheu tinha a intenção de nos aproximar do espectador para além de só nós duas.
O tom confessional pode ter ajudado. Como se enxergam enquanto personagens do filme?
Chica Barbosa: A princípio, nosso público era apenas nós duas. Era uma conversa entre as duas, e essa liberdade, mesmo seguindo referências, nos dava vontade de incorporar estas linguagens à nossa maneira, estimulando uma à outra. Se a Fernanda me mandava uma carta com uma particularidade, eu queria responder com outra que dialogasse com este princípio. Depois, quando criamos mais cartas para o longa, entendemos que éramos personagens. As duas histórias se juntaram e foram colocadas na mesma narrativa. Afinal, o filme tem uma linha narrativa.
Fernanda Pessoa: A gente começou a mostrar os primeiros cortes e as pessoas nos faziam comentários do tipo: “Qual é o arco dessa personagem?”. “Precisamos conhecer mais dessa personagem”. Ficamos nos perguntando o quanto queríamos nos tornar personagens convencionais. É óbvio que a gente era personagem, mas não necessariamente precisaria de um arco, de uma transformação. Não estou fazendo uma jornada da heroína aqui!
Chica Barbosa: A gente tem uma linha temporal ao longo da nossa vida, com o que nos aconteceu durante um ano. Esta foi a nossa linha.
Fernanda Pessoa: Olhar para nós mesmas como personagem foi muito bom. Eu já tinha sido personagem de outro filme meu, o Zona Árida (2019), que tem outra proposta. É um registro muito mais sério, ele vem de outro lugar. Aqui, a gente percebeu que a única forma de lidar com o governo Bolsonaro era não nos levando tanto a sério. Era preciso ter mais desprendimento. Eu queria contar para a Chica, e pensava: será que quero me expor ao ridículo? Aparecer tão pelada assim? Tudo aquilo que eu construía era para ela. Queria que essa personagem tivesse essa leveza e esse desprendimento neste período de 2021.
Chica Barbosa: E aí eu tinha que responder de alguma forma próxima. Nunca imaginei fazer um filme tão pessoal, isso nem passava pela minha cabeça. A proposta mexia com a minha questão de identidade, enquanto brasileira-mexicana indo para os Estados Unidos. Eu entendi que tinha outra identidade para elas: eu era uma POC (People of Color), não era considerada branca. Era outra noção de pertencimento. A personagem vinha dessa experiência migratória muito louca nesse ano pandêmico. Eram questões complicadas, contraditórias. Hoje, vejo o resultado do filme e identifico uma procura de identidade ali.
O filme se passa durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos, e locais no Brasil. Ele chega aos cinemas agora que temos eleições presidenciais no Brasil, e locais nos Estados Unidos. O que mudou nas duas sociedades desde que filmaram?
Chica Barbosa: Teve a eleição do Biden nos Estados Unidos. Comemoramos como uma vitória, mas sabemos que existem problemas muito vivos ali ainda, algo que este governo não vai mudar. Mesmo assim, teve uma importância enorme para negociações identitárias, especialmente para os imigrantes. É outra sensação estar vivo num país como os Estados Unidos no governo Biden, ao invés do Trump. Mas a diversidade do governo Biden não consegue enfrentar um trumpismo que existe ainda. Trump ainda pode voltar, e mesmo que não volte, essa parte do país despertou com ele. Isso nos faz questionar se podemos comemorar vitória, ou se precisamos seguir colocando pressão. Biden era uma figura melhor do que o Trump, mas que não apontava para uma solução. Estas são as contradições que o sistema eleitoral nos traz.
Fernanda Pessoa: No Brasil, do começo do filme para cá, teve uma mudança gigante. O filme começa com os panelaços. Eu acreditava que Bolsonaro ia cair. Tinha certeza de que seria impossível ele ficar, depois dos absurdos que ele dizia, da saída do Sérgio Moro, da troca dos Ministros da Saúde. Era tão absurdo, que imaginei que ele seria insustentável no cargo. Para mim, a gente chegaria num caos tão grande que ele acabaria caindo. Mas a gente quase se acostumou com tudo isso. O fim do ano foi o momento de pensar: e agora? Do começo do filme, em março e abril até o final do ano, Bolsonaro continuou e a gente foi apenas se acostumando. Passamos por 2021, e agora chegamos à eleição mais importante desde a redemocratização do país. É a mais definidora. Temos esta escolha nada difícil entre um projeto democrático e um projeto de destruição total da democracia. É isso que o governo Bolsonaro quer. Dizem que ele é conservador porque quer tradição, família e propriedade, mas este é um governo destruidor, ruindo as instituições e a democracia.
É um momento de muita potência, mas que também nos dá muito medo. A rejeição ao Bolsonaro também deveria ser muito maior. Por tudo que aconteceu nesses dois anos, eu esperaria que fosse maior. Sinto esperanças porque as pesquisas indicam que podemos ter esperanças, mas ao mesmo tempo, precisamos ter muito cuidado. Nada está ganho. É possível que as coisas ganhem, mas nada está garantido. Mesmo que o Lula seja eleito, como a gente espera que seja, nada está resolvido. A destruição foi muito grande, e o governo Lula vem com Alckmin atrelado. Vamos precisar continuar pressionando para que as mudanças importantes continuem acontecendo. É esperançoso, mas nada vai se resolver agora.
Chica Barbosa: Parece que vai ser um governo de concessões, pelo menos no começo. A primeira meta é tirar o Bolsonaro. Mas tirando o Bolsonaro, o que sobra? Que governo podemos esperar depois do desgaste provocado por Bolsonaro?