A primeira edição do Bonito Cine Sur — Festival de Cinema Sul-Americano decidiu se aproximar progressivamente do cinema contemporâneo. A noite de abertura foi marcada pela exibição de uma obra muda de 1932, Alma do Brasil, com acompanhamento de orquestra ao vivo. No segundo dia, saltaram-se algumas décadas com a exibição do clássico Inocência (1983), de Walter Lima Jr. Então, chegou a vez de duas obras profundamente pós-modernas: o curta-metragem Sigma, de Allan Riggs e Rubens Sant’Ana, e o suspense paraguaio Lucette, de Mburucuya Fleitas e Oscar Ayala Paciello.
A contemporaneidade, no caso, se encontra em dois retratos bastante frontais da violência familiar e urbana. O curta gaúcho acompanha um jovem inseguro, que recebe pouco amor dos pais, e logo se vê cooptado por um grupo neonazista. Em sua primeira viagem com os novos colegas de gangue, se surpreende com a agressão de que eles são realmente capazes.
É evidente a vontade dos autores em denunciar o perigo do pensamento totalitário de extrema-direita. O protagonista será devidamente punido por sua afinidade com o pensamento racista e segregacionista, além da cumplicidade com atos do bando. Entretanto, cabe ressaltar a linguagem utilizada para tal crítica social. Os autores abraçam a montagem fragmentada, câmera na mão, trilha sonora intensa, câmera lenta na detonação de uma dinamite. O elenco atua alguns graus acima do realismo, de modo a ressaltar as expressões de ódio e medo.
Nota-se um prazer próximo do cinema hollywoodiano ao transformar a agressão em algo empolgante, pulsante, frenético, bombástico (literalmente). Os criadores se divertem com o universo que pretendem denunciar. Em consequência, falta ao projeto um distanciamento crítico, em termos estéticos, para registrar estas agressões com a devida estranheza, repúdio, ou senso de absurdo. Sigma soa apaixonado demais pelo potencial imersivo das imagens de agressão para pensá-las de fato. Além disso, jamais humaniza as personagens negras, reduzidas às funções de vítima ou justiceiro.
Algo semelhante ocorre no longa-metragem Lucette, ainda que por ferramentas de linguagem distintas. Os diretores Mburucuya Fleitas e Oscar Ayala Paciello apontam o dedo aos casos velados de incesto, pedofilia, violência contra crianças e outras mazelas da sociedade patriarcal. Acreditam que, através do calvário de uma garotinha assassinada, possam efetuar um retrato amargo de abusos.
Em contrapartida, esforçam-se para estabelecer uma relação de imersão com o espectador. Por isso, adotam trilha sonora sombria em excesso, montagem fragmentada, flashes xamânicos de uma mulher negra em transe, imagens de homens enraivecidos gritando ou esmurrando as paredes. Desde a primeira cena, o tom será grave e seríssimo, e apenas se acentua a seguir. Leia a nossa crítica.
No final, os dois primeiros títulos da mostra competitiva se levam muitíssimo a sério enquanto denúncias sociais, sem perceberem que os recursos utilizados apelam às emoções e sentimentos imediatos, ao invés de uma reflexão distanciada. Adotam registros convencionais para representarem situações aberrantes, e um estilo pop-divertido para ilustrar casos nada divertidos. Há uma discrepância evidente entre forma e conteúdo.
O ponto alto do dia coube à exibição de Inocência. Além da projeção do clássico aos espectadores locais, o debate com Walter Lima Jr. transpareceu a lucidez impressionante do diretor, muito honesto no diálogo com o público e na reflexão acerca da importância de sua obra. Ele revelou episódios inusitados à plateia (o beijo romântico teria sido um desejo de Fernanda Torres, contra a vontade do próprio cineasta), enquanto debateu o suposto caráter “romântico” da obra, que significaria, ao seu ver, um retrato dos valores e da moral vigentes naquela época. Leia a nossa crítica.