Tudo o que Você Podia Ser (2023)

A estética do carinho

título original (ano)
Tudo o que Você Queria Ser (2023)
país
Brasil
gênero
Drama
Direção
Ricardo Alves Jr.
elenco
Aisha Brunno, Bramma Bremmer, Igui Leal, Will Soares
visto em
27ª Mostra de Tiradentes (2024)

Aisha (Aisha Brunno) visita o irmão. Troca momentos de afeto com a cunhada e o filho do casal. Esta cena inicial impressiona pelos melhores motivos: quantas mulheres transexuais, ou travestis, você já viu no cinema, junto às suas famílias, acalentando um bebê? Já Igui (Igui Leal) comunica à mãe, por chamada de vídeo, a decisão de cursar o doutorado na Alemanha. Will (Will Soares) lamenta o fato de perder parte do trabalho que lhe garantia a renda mensal.

Tudo o que Você Podia Ser se dedica ao cotidiano de quatro amigas trans, travestis ou não-binárias pelo centro de São Paulo. Elas jantam juntas, dobram roupas usadas para doação, se preparam para a balada, trocam confidências. O longa-metragem aposta na banalidade enquanto política afirmativa: em oposição ao preconceito de que as minorias levariam vidas sórdidas, repletas de drogas, sexo e comportamentos reprováveis, revela conflitos diários semelhantes àqueles de tantos espectadores cisgêneros.

Devido à escolha pelo naturalismo, as melhores cenas decorrem da aparência de improviso, ou da linguagem documental. As conversas das amigas enquanto comem um cachorro-quente na saída da balada transbordam de vitalidade, e revelam a capacidade do diretor Ricardo Alves Jr. em representar diálogos verossímeis. As brincadeiras em torno da mesa, quando jogam Verdade ou Consequência, também transparecem interações de aspecto inesperado, em meio a alguns conflitos condicionados pela direção.

O drama se insere nesta onda de filmes brasileiros carinhosos, doces, que preferem representar vivências não-majoritárias através da política dos afetos.

Nestes instantes, a câmera se permite tremer, deslizar quase por acaso quando Will aparece, um andar acima, fazendo uma pergunta às demais. Nota-se o esforço em posicionar o olhar do espectador na condição de um colega suplementar, sentado junto do quarteto, escutando atentamente o que tenham a dizer. Visto que a dinâmica das quatro permite o caos, as falas sobrepostas e os ruídos, justifica-se o uso de uma câmera com movimentos livres, abertos à espontaneidade.

Por outro lado, os instantes claramente roteirizados revelam algumas fraquezas do projeto. Existe um abismo separando as provocações amigáveis das protagonistas e a cena em que Bramma (Bramma Bremmer) se confronta à mãe (Docy Moreira), escutando frases cristalizadas de homotransfobia. “Eu queria ter meu filho de volta. Não isso que você virou”. Os diálogos soam escritos demais para a boca dos atores, e traduzindo um conflito que chega sem preparação prévia dos personagens para tal. A mãe existe unicamente num instante de clímax.

O mesmo ocorre durante a provocação transfóbica do ônibus. A artificialidade contamina a cena, seja pela ausência de pessoas nos bancos ao redor, seja pelos close-ups no rosto de cada agressor, ou ainda pela caminhada na passarela em seguida, diante de um fundo desfocado. Incomoda que praticamente toda a carga dramática seja depositada sobre Bramma, encarregada de sustentar os instantes mais roteirizados, e também menos instigantes, da primeira parte, quando se analisa o quarteto separadamente. 

Assim, a potência se limita devido a indefinições de ordem conceitual, escondidas pelo rótulo de “híbrido” (destinado, assim como o “experimental”, a conter todas as obras de difícil definição). O ponto de vista hesita entre enxergá-las de perto, ou na condição de cúmplices afastados (a primeira conversa de Bramma ao computador, a respeito de sua soropositividade), e mesmo de voyeurs (a dança das duas amigas no quintal, espiada através de uma fresta). 

Em determinadas passagens, Tudo o que Você Podia Ser permite que as quatro se portem de maneira bastante livre em frente às câmeras. A energia impressionante de Will Soares ilumina as imagens, e o talento de Aisha Brunno comprova a capacidade de lidar com diálogos e coordenar o grupo através de uma liderança tão segura quanto silenciosa. A este propósito, Brunno se prova uma atriz tão forte que desperta interesse para vê-la em novos projetos. (Diretores e produtores, fiquem de olho neste nome).

Poucas cenas depois, chegam algumas simbologias desgastadas: o encerramento com o quarteto abraçado, enxergado o nascer do sol, enquanto a trilha sonora altíssima entoa a frase que justifica o título; ou o corpo de Aisha para fora do carro, numa metáfora evidente de liberdade e respiro. Nestas horas, a câmera antecipa o movimento das personagens, diluindo a impressão de espontaneidade do gesto. A obra vibra muito mais quando não busca se organizar com tamanho senso de controle.

No final, o drama se insere nesta onda de filmes brasileiros carinhosos, doces, que preferem representar vivências não-majoritárias através da política dos afetos. Nenhum deles nega os conflitos sociais, pelo contrário: Sem Coração, Saudade Fez Morada Aqui Dentro, Estranho Caminho, O Dia que Te Conheci e os principais títulos da safra recente do nosso cinema autoral lidam com minorias enfrentando graves problemas sociais. Entretanto, recusam-se a enveredar pela denúncia, pelo espetáculo da dor, pela violência extrema. As agressões são insinuadas; o sexo está ausente. 

Trata-se do momento em que os diretores parecem não querer sujeitar os personagens a traumas que talvez os atores tenham vivenciado de fato, nem instrumentalizá-los na condição de exemplos de uma causa. Por isso, valorizam o dia a dia, as ações cotidianas. Ao invés do sangue e da voracidade, apostam nos abraços e nos beijos. Ao invés das lágrimas, as pequenas dores reprimidas ou superadas. Filma-se a vida apesar da opressão, para além dela. Algumas poucas exceções viriam de Levante, onde ainda se permitia um furor quase maníaco, e dos títulos que exploram ferramentas do cinema de horror (Medusa, por exemplo).

De resto, o cinema brasileiro se abraça, se acalenta, tal qual o bebê na cena inicial. A estética da leveza não implica em filmes fracos, pelo contrário. No entanto, convém prestar atenção para o limite em que esta banalidade contamine a estética — vide a longa sequência da conversa de Aisha com Will, em plano e contraplano acadêmicos conforme almoçam, ou a filmagem apenas frontal e simétrica das quatro amigas no balcão. O próximo desafio seria encontrar o cruzamento mais potente entre afeto humanista e fervor estético. Que nossa empatia não nos impeça de buscar formas ousadas.

Tudo o que Você Podia Ser (2023)
6
Nota 6/10

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