Nos tempos de redes sociais e exposição massiva de nós mesmos na Internet, a principal fobia social viria do ato de estarmos sendo vigiados contra a nossa vontade? Esta hipótese surge diante dos curtas-metragens escolhidos para a mostra Horror do 14º Cinefantasy: Festival Internacional de Cinema Fantástico. Os títulos são dominados por uma força fetichista, que espia, se aproxima e, depois de se amparar da imagem dos personagens, apodera-se de seus corpos.
A representação mais explícita deste princípio vem do brasileiro Amara (2021), de Danielle Amaral e Fernando Pompeu Neto. No filme, uma mulher acorda e descobre a presença de um vulto no fim do corredor, filmando-a. Ele segura uma grande câmera, e não demonstra preocupação em se esconder. O motor das narrativas de invasão doméstica se desloca para a violência da imagem captada à revelia: o invasor demonstra interesse nulo nos objetos da casa ou no corpo da moradora. Seu interesse se encontra em provocar incômodo, criar a sensação da impossibilidade de escapar. O Mal funciona, em primeira instância, como terrorista.
Algo semelhante ocorre no britânico Estourando (2020), de Kathryn MacCorgarry Gray. A captadora de som de um projeto cinematográfico descobre-se refém de barulhos assustadores que a perturbam. Novamente, o audiovisual se torna motor de fantasmagoria e invasão. Ela se encontra sozinha, a exemplo de Amara, lutando contra um som crescente, de origem indefinida — talvez porque esteja em todos os lugares. A lógica da tortura se reproduz neste curta de maneira idêntica: por mais que se tente afastar ou fugir, o elemento de intromissão vence no final.
O futuro pai do finlandês Gravidez (2021), de Juho Fossi, percebe estar sendo registrado, igualmente. Seguindo a lógica dos roteiros citados acima, a fonte da gravação é desconhecida, equivalendo ao Mal, ao Outro, ao Desconhecido. Neste caso específico, trata-se de um registro do futuro, anunciando que o sujeito amoroso, pintando o quarto do bebê prestes a nascer, se tornará um tipo asqueroso, pedófilo, abusador. Ora, ao invés de retaliar contra si mesmo, ele parte ao ataque da mulher e do filho que ela porta no ventre.
Este é provavelmente o maior (e único) filme problemático, em termos éticos, da seleção de Horror. A lógica de um homem que se vinga de mulher e filho “pelo bem deles”, para prevenir um mal maior no futuro, aparenta atenuar o peso do feminicídio. O diretor acredita estar abordando uma única solução possível, uma tragédia inevitável em que todos os personagens seriam vítimas equivalentes. Por este aspecto, pode-se falar numa obra machista, que efetua o retrato de uma masculinidade tóxica sem se distanciar da mesma para criticá-la. O ponto de vista acompanha e “perdoa” o ato impensável do herói.
Outros personagens são vigiados e punidos, em obras mais misteriosas do que moralmente condenáveis. A única comédia da lista, a canadense Cruzeiro (2021), explora o inferno de trabalhar como atendente de telemarketing. Jovens tentam desesperadamente oferecer um cruzeiro gratuito a sujeitos descrentes do outro lado da linha. Conforme a narrativa avança, o diretor Sam Rudykoff revela que os funcionários se encontram sob a mira direta de uma arma, pronta a deliberar a respeito do sucesso de seus esforços. Havia um par de olhos bastante perigosos aguardando para julgar o desempenho destes garotos.
No caso do americano O Fundo (2021), o espectador pode acreditar que existem, neste cenário frio de um lago próximo à floresta, apenas dois personagens presentes: o atirador, com uma espingarda apontada, e sua possível vítima, um rapaz nu que recebe a ordem de afundar na água. “Mas o que existe no fundo?”, pergunta desesperado o tipo na mira de seu algoz. Ora, os cineastas Morgan Ruaidhrí O’Sullivan e James Kautz logo revelam a existência de muitos olhos ao redor, vigiando, apreciando o show da violência e do copo exposto, aguardando a resposta àquela pergunta. Ninguém se preocupa em salvar o jovem fragilizado, pelo contrário: o espetáculo precisa continuar.
A vigilância se estende a mais uma narrativa de machismo e feminicídio — esta, pelo menos, posicionando-se junto à mulher perseguida. O argentino Latente (2021), de Clara Sosa Faccioli, acompanha a jornada de uma açougueira buscando escapar das garras do marido dominador e fugir com o cliente que realmente ama. A metáfora dos pedaços de carne cortados violentamente está longe de produzir alguma originalidade, no entanto, a diretor consegue criar uma atmosfera de asfixia muito interessante para o curta-metragem passado, em grande parte, a céu aberto. Aqui, uma vez mais, a vítima busca escapar, até descobrir que existem olhos acompanhando seus planos de liberdade, e prontos para agarrá-la de volta.
Há olhos e ouvidos por todos os lugares, especialmente quando se preferia estar sozinho, sem ninguém ao redor. Para a mãe enlutada de Umbral (2021), era melhor se encontrar no silêncio do apartamento do que face a uma assombração. Para a filha de No Solo (2021, imagem em destaque acima), é impossível ficar em casa e continuar admirando a decadência crescente do pai com tendências suicidas. Quando o horror se concretiza, ela precisa justamente virar o olhar e escapar. Já a nova moradora de um casarão, em Preso (2022), demonstra medo de ficar sozinha no sótão escuro, porém a situação piora quando descobre, de fato, uma criatura maligna escondida num baú.
Destes, o destaque fica por conta do dinamarquês No Solo, o melhor curta-metragem de toda a mostra. Impecavelmente filmado, montado e atuado, ele surpreende por elaborar uma atmosfera de tensão baseada na linguagem cinematográfica, ao invés de recursos fáceis de roteiro e maquiagem. Durante a maior parte da trama, a filha adolescente apenas percebe um comportamento estranho do pai, que insiste em cavar um buraco no terreno familiar. O que pretende? Por que insiste na participação da filha para estes planos?
Os silêncios, as luzes de lâmpadas à noite e a granulação da imagem promovem uma atmosfera perturbadora, antes que qualquer conflito se materialize. O cineasta Casper Rudolf Emil Kjeldsen compreende a importância de elaborar sugestões e deixar que o espectador complete por conta própria a gama de monstruosidades que estariam por vir. Chegada a hora da violência, sugere-se pelo som e pelos olhares alheios o impacto do ocorrido. Trata-se de uma impressionante demonstração de mise en scène e controle da espectatorialidade.
O italiano Preso e o espanhol Umbral estão distantes deste grau de excelência, preferindo apelar a um imaginário familiar do horror. O primeiro se apressa em construir a criatura escura com chifres, atacando sua presa pelo prazer de fazê-lo. A mulher lésbica de transforma em vítima desse ataque desprovido de tensão, buscando compensar a simplicidade do roteiro com o impacto da fotografia e da maquiagem. Há vilões e mocinhas, forças do mal e resistências do bem. Certamente, há espectadores que preferem esses códigos cristalinos às tramas repletas de subentendidos.
O segundo transforma o apartamento de classe média num casarão assombrado contemporâneo, onde o fantasma do filho se vê protegido, ou talvez sequestrado, por uma força maligna ausente em imagens. Deve-se abraçar o retorno do garotinho falecido, ou temer o espírito que o acompanha? É possível ter um sem o outro? O amargo retorno do filho pródigo determina a aparência tragicômica do curta-metragem, de atuação modesta, porém ciente do poder de sugestões.
Em geral, os curtas-metragens da Mostra Horror se dividem entre grandes produções, de aspectos técnicos e de linguagem afiadíssimos (No Solo, Estourando, Gravidez, O Fundo) e filmes que abraçam a estética caseira, a textura de baixa qualidade enquanto registros voluntários de uma perturbação mais próxima do nosso cotidiano (Amara, Cruzeiro, Latente, Preso, Umbral). De qualquer modo, existe uma presença nos vigiando, controlando, impedindo nossa liberdade. Os finais são, em sua quase unanimidade, pessimistas. A imagem se transformou no bicho-papão dos nossos tempos.