A História da Guerra Civil (1921) provoca sentimentos paradoxais. Por um lado, ele constitui o exemplo de um cinema “ao vivo”: Dziga Vertov se encontrava de fato junto aos batalhões em diversas cenas deste documentário, observando a uma proximidade razoável os bombardeios, os cadáveres pelo chão e os tiros disparados durante a Guerra Civil Russa (1918-1922). O cinema se transforma numa arma de guerra suplementar, e o diretor, num combatente análogo aos militares.
Este procedimento aproxima a câmera de sua função bélica, tão bem analisada pelos teóricos da primeira metade do século XX. Afinal, o verbo to shoot (disparar, atirar) se presta tanto à filmagem quanto ao ataque do inimigo. Na época em que as câmeras ainda eram pesadas, de mobilidade reduzida, com a necessidade de trocar rolos de película com frequência, impressiona a agilidade obtida por Vertov ao acompanhar os fatos.
Aqui, o diretor demonstra mais do que a coragem de se posicionar no terreno de combate: ele deseja explorar o cinema enquanto prova de verdade e documento para a posteridade. Neste sentido, o projeto cumpriu seu papel ao ser “redescoberto” muitas décadas depois, e restaurado a tempo do centenário da batalha. Deparamo-nos com este material como quem abre um livro de história, com a impressão de mínima intervenção no meio, ou de condicionamento dos cenários e ações para as filmagens. Vertov aparenta ter aberto a objetiva e captado os fatos da melhor maneira possível — o cinema se condiciona ao mundo, não o contrário.
No entanto, a aparente “objetividade” deste olhar in loco se choca com um posicionamento profundamente ideológico, assumido enquanto tal. Para o espectador que ainda espera do documentário uma impossível neutralidade, a obra responde com um partidarismo claríssimo. “Queimaram as nossas pontes”, se exclama o autor, em relação às estratégias de guerra contrarrevolucionárias. “Os agentes do Capital queimaram nossas reservas de petróleo”, revolta-se adiante. A jornada está repleta de intromissões em cartelas, quando se explica cena a cena, mencionando “o nosso exército”, “os nossos recursos”.
Para o espectador que ainda espera do cinema documentário uma impossível neutralidade, a obra responde com um partidarismo claríssimo. […] Trata-se de um cinema soviético e comunista, orgulhoso desta configuração.
Trata-se portanto de um cinema soviético e comunista, orgulhoso desta configuração. A História da Guerra Civil foi apresentado pela primeira vez na 3ª Internacional Comunista, em Moscou, enquanto ferramenta de mobilização política. Os frágeis espectadores reacionários do século XXI, que acusam os brasileiros Bacurau (2019), Marighella (2019) e Medida Provisória (2021) de serem “obras de propaganda”, apenas deflagram seu desconhecimento da cultura das imagens. Deveriam procurar do lado do cinema soviético (à esquerda) e das obras de Leni Riefenstahl (à direita) exemplos do que uma obra de propaganda pode ser, e como isso não exclui as qualidades artísticas — e também como a estética poderia, ou não, ser dissociada da ideologia.
Em virtude de sua natureza didática, a obra possui um caráter descritivo, linear. A apresentação se divide em capítulos curtíssimos, e possui tantas cartelas quanto imagens captadas. Era fundamental ao autor que cada trecho fosse devidamente significado e interpretado ao espectador, para não correr o risco de suscitar leituras ambíguas. O objetivo da obra se torna claro: convencer seu interlocutor de se posicionar junto aos esforços do exército vermelho contra o “perigo branco”. A limitação do projeto seria a mesma de qualquer iniciativa panfletária, no caso, o risco de se comunicar somente com pessoas propensas a abraçar aquele discurso, e previamente convertidas à causa.
Logo, defende-se a glória vermelha aos vermelhos, num gesto retórico de cinema. No fundo, Vertov prova sua devoção ao comunismo, e ao cinema enquanto ferramenta de apreensão do real, ao invés de fornecer informações novas a respeito do período. Por isso, o resultado se recobre de valor por si próprio, pela simples existência: exalta-se a presença do cineasta em meio à batalha, o posicionamento firme, a captura de imagens raras. Quanto ao conteúdo das mesmas, dizem respeito às estratégias comuns de ataque e defesa de ambos os lados. Aos historiadores, devem interessar particularmente as sequências a respeito do surgimento dos tanques de guerra, representados com a curiosidade de um brinquedo exótico.
Rumo à conclusão, Vertov se arrisca num exercício de futurologia, apostando que os soldados “se lembrarão disso para sempre”. Trata-se de um dos raros instantes opinativos para além da interpretação partidária do evento. O gesto aponta à necessidade de transformar as imagens num réquiem, um épico pela glória dos combatentes e do Partido Comunista. A montagem inclusive se concentra em diversos líderes da guerra, nomeando-os e observando-os em plano fixo, para que fiquem devidamente gravados na memória e nos autos. Existe um senso de responsabilidade diante da tarefa acolhida pelo diretor, que ciente da profunda importância de seu filme. Em diversos instantes, a narrativa se assemelha a um álbum de retratos dos grandes homens que asseguraram a vitória comunista.
Cem anos depois, A História da Guerra Civil reflete o abismo que separa o cinema dos primórdios de sua prática contemporânea. Ao espectador do século XXI, marcado pela atenção difusa, e carente de imagens elaboradas para agradá-lo, o resultado deve ser árduo pela ausência de diversidade de ritmos e tons. A frutífera montagem que Vertov viria a aplicar no clássico Um Homem com uma Câmera (1929) ainda está distante deste exercício mais comportado, que jamais ousa elevar a estética acima do tema. Apesar da trilha sonora de orquestras retumbantes, o teor se mantém expositivo e solene, do início ao fim. A noção de cinema como distração passava longe dos olhares a quem se destinava o projeto.
Além disso, chama a atenção a experiência de uma obra cujo protagonista seria a coletividade. Embora cite generais e comandantes, ninguém assume o controle da narrativa, e nunca observamos a guerra pelo ponto de vista de uma pessoa em particular. A câmera se posiciona numa distância relativamente segura, abraçando composições com dezenas de anônimos juntos. O cinema atual apostaria em uma ou poucas figuras capazes de guiar nosso olhar e favorecer a identificação do personagem. Vertov prefere a identificação com uma ideia, com uma massa de homens indistintos, unidos em torno de um propósito comum.
Esqueça a lista de Schindler, a coragem do soldado Ryan, a resiliência de um pianista. O heroísmo será de todos ou de ninguém, num gesto que condiz com a organização do pensamento comunista. É impossível assistir à obra sem levar em consideração as circunstâncias em que o filme chega aos olhares ocidentais e pós-modernos: durante uma profunda crise financeira e sanitária, em pleno bombardeio da Ucrânia pela Rússia (Kiev é retratada na obra de 1921), disputando espaço no circuito comercial com Sonic, Homem-Aranha e Animais Fantásticos. É impossível nos distanciarmos da contemporaneidade, para quem essa linguagem soa austera demais.
Podemos supor que, em sua época, tenha sido acolhida com a naturalidade de um blockbuster. Mas esta seria apenas uma adivinhação: a beleza de redescobrir, literalmente, um longa-metragem monumental de cem anos atrás reside inclusive na capacidade de perceber o quanto evoluímos, ou involuímos, enquanto artistas, sociedades e agentes políticos em nome de uma ideologia comum. Hoje, o medo do comunismo pelo indivíduo apolítico brasileiro apenas sublinha o desconhecimento do que esta forma de pensamento significou.
Teria sido excelente presenciar o “cidadão de bem” de 2022 assistindo a esse filme. Mas isso nunca acontecerá, é claro. A bela obra de esquerda chega, cem anos depois, apenas aos nossos olhares de esquerda. Ela relembra que, em sua época, nunca visou conciliar grupos opostos, nem atenuar polarizações que sempre existiram. Pelo contrário, buscou inflamar suas bases, convencê-las da importância de suas ações. Constituía, em suma, uma ferramenta de sustentação da luta. Neste sentido, mostrava-se, como ainda se mostra, profundamente eficaz.