Esta Casa (2022)

A meta-metalinguagem

título original (ano)
Cette Maison (2022)
país
Canadá
Gênero
Experimental, Drama
duração
75 minutos
direção
Miryam Charles
elenco
Schelby Jean-Baptiste, Florence Blain Mbaye, Eve Duranceau, Nadine Jean, Tracy Marcelin, Yardly Kavanagh, Matthew Rankin
Visto em
11º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba

Esta produção experimental parte de uma história verídica: aos quatorze anos, uma garota foi encontrada morta. Após exames dos médicos, descobre-se que foi vítima de um violento estupro, escondido dos familiares. Os responsáveis nunca foram encontrados. Este seria material perfeito para os documentários policiais da Netflix, apostando na transformação do sofrimento alheio em entretenimento para as massas. O episódio também poderia servir de denúncia política, com linguagem urgente e inconformada, apontando dedos contra o descaso do sistema.

No entanto, a diretora Miryam Charles segue um caminho diferente. Ao invés de privilegiar os fatos e a investigação criminal, fragmenta os pontos de vista e as possibilidades de leitura. Afeita ao cinema experimental, acredita numa mistura vertiginosa entre reconstituição em estúdio, encenação teatral, direção realista e delírios sugeridos pela narração etérea e as capturas de casas em ruínas, onde o crime poderia ter ocorrido. O tema é reinterpretado por inúmeras maneiras — ao invés de oferecer as respostas certas, Charles multiplica as perguntas.

Ao espectador, a descrição sucinta do parágrafo inicial pode nunca ficar realmente clara ao longo da projeção. O que salta aos olhos é a experiência profunda de metalinguagem. Esta Casa (2022) consagra sua duração inteira a alertar o espectador de que está assistindo a uma criação fictícia, de que o dispositivo existe, e de que todos os objetos, escolhas de luz e de texto não passam de artifícios. “Tudo é possível aqui”, lembra a narração, repetidas vezes. “Nada disso é real”, alerta.

“Eu morri em 2008”, declara Tessa (Schelby Jean-Baptiste). Ela se encontra no centro do enquadramento, com roupas engomadas demais, e repete a fala pelo menos quatro vezes. “A história será contada sem nós, mais uma vez”, lamenta este alter-ego da diretora, em referência ao apagamento de violências cometidas sobretudo contra mulheres negras. Assim como Flaubert afirmava “Madame Bovary sou eu”, Charles parece enunciar: “Tessa sou eu”. Em cada cena, verbaliza através das atrizes-personagens suas intenções e reflexões decorrentes do caso.

Esta Casa desperta a impressão de ser um melhor filme sobre o cinema do que sobre uma garotinha morta precocemente.

O discurso da diretora se estende à narração em off. As falas possuem um caráter tão expositivo e formal que beiram o humor, por sua inadequação ao cinema clássico. “O que propomos aqui: uma viagem fluida no tempo e espaço”, precisa a cineasta na abertura. Quantos filmes, incluindo os experimentais, se iniciam com uma carta de intenções? “Minha história é ao mesmo tempo trágica e cheia de esperança”, insiste a garota. Até a leitura dos sentimentos é condicionada desde a partida. 

Para um cinema de liberdade e subversão, há um inesperado desejo de controle dos sentidos por parte da autora. Mesmo este otimismo (a história “cheia de esperança”) soa tímido no conjunto. O longa-metragem é composto por imagens fantasmáticas e alusões duras às agressões cometidas contra mulheres negras de origem estrangeira (trata-se de uma obra canadense a respeito de indivíduos de origem haitiana). A representação da menina violada domina uma longa cena, destacando o corpo ao centro da imagem. Sente-se o respeito e o peso do acontecido com mais força do que a possibilidade de reconstrução. O niilismo se sobressai ao possível sorriso.

Para as atrizes, oferece-se a possibilidade de uma composição distante dos moldes do cinema convencional e narrativo. Seus corpos possuem uma função retórica — um valor pelo simples fato de estarem ali, naquele local. Suas falas são deliberadamente artificiais, e às vezes o elenco posa nos terços do enquadramento predeterminados pela cineasta. As atrizes se prestam a uma boa performance, sobretudo no trabalho com os diálogos. Schelby Jean-Baptiste e Florence Blain Mbaye, que interpreta a mãe, esbanjam afeto nas falas, evitando cair no sentimentalismo.

Já o espectador imerge num labirinto onde existe maior prazer em se perder do que se encontrar. Quem espera informações fatuais e esclarecedoras sobre a morte e o estupro deve ficar bastante frustrado. Aquele que, em contrapartida, mergulhar no universo sensorial, na representação ampla de amores, tristezas e dores do luto, retratadas por um quarto construído em estúdio e um jardim dentro de casa, terá recompensas de sobra. O registro em película 16mm, com sua granulação particular e janela mais próxima do quadrado, favorece o estranhamento desejado pela autora.

“Eu estou fabulando. É isso que fazemos aqui, não?”. Rumo à conclusão, Esta Casa desperta a impressão de ser um melhor filme sobre o cinema do que sobre uma garotinha morta precocemente. No que diz respeito às potências estéticas, Charles combina sobreposições, fusões, efeito de película queimada ou danificada, além de luzes teatrais. Ela o faz de maneira organizada, evitando o caos e a aleatoriedade. Todo dispositivo cênico retorna pelo menos uma vez ao longo da experiência, para ser desenvolvido e ressignificado.

Enquanto representação do crime, o projeto possui o mérito de compreender sua complexidade, e fugir à armadilha de tentar esclarecê-lo. No entanto, pode-se reclamar à diretora sua vontade de se apropriar de uma tragédia enquanto mero tema e objeto de estudo. Nunca enxergamos o mundo pelo olhar de Tessa, e ela jamais adquire o protagonismo da trama. O cinema faz-de-conta grita muito mais alto do que o humanismo que pretende representar, o que talvez desperte algum receio. Ressalvas à parte, saltam os olhos a força feminina e a empatia com as vítimas.

Esta Casa (2022)
6
Nota 6/10

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