Music (2023)

Destragédia

título original (ano)
Music (2023)
país
Alemanha, França, Sérvia
gênero
Drama, Experimental
duração
108 minutos
direção
Angela Schanelec
elenco
Aliocha Schneider, Agathe Bonitzer, Marisha Triantafyllidou, Argyris Xafis, Frida Tarana, Ninel Skrzypczyk, Miriam Jakob, Wolfgang Michael
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Um bebê é encontrado nas montanhas. Na mesma paisagem grega, um cadáver será o alvo de uma investigação policial. Em algum tempo no futuro, um jovem se surpreende com o flerte de outro rapaz e, ao empurrá-lo, provoca um assassinato. Na prisão, ele se apaixona por uma carcereira de origem misteriosa, com quem tem um bebê. Há suspense e reviravoltas suficientes em Music para rechear uma grande produção hollywoodiana, ou então um thriller erótico dirigido por Park Chan-wook. Os elementos soam espetaculares e emotivos por si próprios.

No entanto, a diretora alemã Angela Schanelec propõe uma experiência bastante rara a partir de tais elementos. Em primeiro lugar, oferece sua releitura lacônica de Édipo Rei, de Sófocles. As peças principais estão em jogo (a paixão, o assassinato, a cegueira), ainda que a cronologia esteja embaralhada, invertendo relações de causa e consequência, intercalando o antes e depois das transgressões morais. Algumas funções de personagens se deslocam e se atualizam, no entanto, a premissa segue intacta.

É curiosíssimo encontrar uma obra conceitual para um dos textos mais emotivos entre as tragédias gregas clássicas. Neste ponto, reside o principal interesse do projeto: o encontro entre um material profundamente consequente, onde a moral e a culpa desempenham papel determinante, e um estilo desafetado, frio, que diminui o máximo possível tais relações causais. Imagine Édipo sem desespero, sem choro, sem lamentar aos céus a própria sorte. Imagine uma Jocasta que, tomando consciência da identidade de seu amante, não move um único músculo do rosto.

Em outras palavras, a cineasta retira da tragédia seu pathos, seu aspecto trágico, investigando o que resta à trama. Assim como a diretora parte da referência grega original para uma leitura mais pessoal e contemporânea, a imagem também migra da Grécia, no início, para a Alemanha em seguida. Schanelec literalmente traz o conflito para perto de si própria e de sua cultura. Ao citar a Copa do Mundo, insiste em adequar Édipo à virada do século XXI, quando questões de homofobia (o beijo entre rapazes, no início), imigração e adoção despertam novos questionamentos, ainda que permaneçam em segundo plano.

A cineasta retira da tragédia seu pathos, seu aspecto trágico, investigando o que resta à trama. […] Music aposta num registro simbólico, ao invés de naturalista.

Isso se deve ao fato que Music aposta num registro simbólico, ao invés de naturalista. Em sua carreira, a diretora nunca demonstrou nenhum apreço pela verossimilhança. Aclamada em grandes festivais, sobe ao palco para receber seus prêmios com um olhar indiferente e aborrecido. É curioso que as maiores instituições de cinema sigam valorizando a mulher que tão claramente os desconsidera. No entanto, melhor para o público, que ganha a oportunidade de acessar uma obra misteriosa e provocadora, muito rara inclusive para o circuito alternativo. Quantos diretores simbólicos se encontram na mostra competitiva dos grandes festivais?

Portanto, as atuações se convertem em performances. Os atores entregam um corpo presente como uma tela em branco, marcados por poucas emoções. O absurdo das situações, ou o mistério de suas motivações, constitui uma finalidade em si. O filme despreza relações explicativas, preferindo produzir sentido por meio de associações entre símbolos dispersos ao longo da trama. Com a fragmentação da montagem, as peças se tornam ainda mais embaralhadas, cabendo ao espectador juntá-las. Alguns filmes solicitam um interlocutor parceiro, porém este vai além, exigindo ao público um esforço considerável para ir em direção à obra. Em consequência, evita agradá-lo ou seduzi-lo. 

Enquanto isso, multiplicam-se as imagens de mãos e pés, prolongando o tradicional fetiche da autora, mas também sua crença de que braços e pernas possam expressar emoções da mesma maneira que o rosto. Para cada plano fixo do rosto austero de Agathe Bonitzer, haverá outro plano das mãos da garota entrelaçada àquelas de seu amado, sob a água da pia. Para cada plano de conjunto de Aliocha Schneider, entram em cena detalhes próximos de seus pés. Os conceitos de fotogenia e de organização espaço-temporal, ambos associados à primazia do rosto humano e fundamentais à compreensão moderna de mise en scène, são reconfigurados através do cinema praticado pela diretora.

No que diz respeito ao título, a música exerce um papel importante. O longa-metragem se inicia no silêncio, abraçando em seguida as composições clássicas da ópera, até o folk contemporâneo no final (as canções acompanham a evolução de épocas e estilos). As letras se referem diretamente às questões de vida e morte e aos infortúnios do amor, embora jamais contaminem a estética com um mínimo de tragicidade. A melodia na trilha sonora serve a sublinhar a postura curiosa de um filme cerebral a respeito dos sentimentos, ou seja, um projeto interessado nas emoções enquanto objeto de estudo, de maneira distanciada. 

O som efetua um belo percurso, na condição de personagem próprio. No início, ocupa uma função extradiegética (a tradicional trilha de fora da história, para banhar as imagens e determinar o tom). Em seguida, torna-se intradiegético (ou seja, dentro da trama), com os personagens cantando em seus cenários, a exemplo da prisão. Por fim, os atores saem de seus papéis, e em fragmentos apartados da narrativa, cantam num estúdio, na forma de uma apresentação musical — ou uma gravação para a trilha sonora (vide a imagem acima, à direita). Até o som evita os sentimentos, a imersão, propondo um caminho autônomo de estranhamento.

Music deve soar hermético demais para a maioria dos espectadores. O gesto é voluntário e calculado, sem dúvida. Mesmo na sessão de imprensa do Festival de Berlim, os críticos se entediavam, ou se levantavam e abandonavam a sala. A reação não chega a surpreender diante de uma forma de cinema que se constitui por oposição a outras — contra as histórias clássico-narrativas, contra a atuação tradicional, contra o realismo, contra a jornada do herói, contra a recompensa emocional ao público. Resta uma iniciativa tão interessante pelo que faz quanto por tudo aquilo que não faz, que evita fazer. O resultado é mais admirável intelectualmente do que pela experiência proporcionada.

Music (2023)
7
Nota 7/10

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