Medida Provisória (2020)

Cinema do caos num país em caos

título original (ano)
Medida Provisória (2020)
país
Brasil
Gênero
Drama, Fantasia
duração
103 minutos
direção
Lázaro Ramos
Elenco
Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Mariana Xavier, Adriana Esteves, Renata Sorrah, Paulo Chun, Aldri Anunciação, Dona Diva, Hilton Cobra, Criolo, Flávio Bauraqui
Visto em
Cinemas

O principal mérito de Medida Provisória (2020) se encontra na obstinação de seu diretor. Lázaro Ramos, ator popular, cercado de inúmeros colegas talentosos da indústria audiovisual brasileira, poderia ter concebido uma obra singela sobre o racismo, do tipo que prega a conciliação pelo afeto. Teria sido mais simples sugerir ao público que se dispa de preconceitos, abrace as diferenças e componha uma sociedade igualitária.

Ora, ele opta pelo caminho arriscado de uma obra de afronta. Nesta distopia diretamente relacionada com o Brasil sob Bolsonaro, pessoas negras são primeiro convidadas e, depois, obrigadas a voltar para a África — “para o seu próprio bem”, sugerem as autoridades. A premissa incendiária discute racismo, é claro, mas também colorismo, conservadorismo religioso, novas formas de fascismo disfarçadas de democracia, e golpes brandos que dispensam os tanques nas ruas. Em outras palavras, um panorama da normalização da barbárie.

Neste processo, reformula termos que se desgastaram no imaginário coletivo e perderam o potencial de choque. Quilombos se tornam “afrobunkers”, pessoas negras ganham o termo tucanizado de “indivíduos de melanina acentuada”, ou “melaninados”. Já o “Ministério da Devolução”, responsável pela escravidão ao avesso, reflete a atual gestão política onde cada pasta é gerida por uma pessoa contrária aos seus propósitos: um secretário da Cultura contra a Cultura; um representante do Ibama contra os índios; uma liderança negra contra o direito dos negros. Um antigoverno, enfim.

Percebe-se a crença profunda no conceito inicial: partindo da peça “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação, Ramos retrata desdobramentos distópicos sem meios-termos nem atenuações. Pelo contrário, o resultado será tão assertivo quanto desprovido de sutilezas: o ministro malvado ri de sua própria predileção por sorvete de chocolate, devido à cor do doce, enquanto sua fiel escudeira, análoga a Damares Alves, envergonha-se ao pedir um café preto.

 Os problemas se encontram na elaboração estética e narrativa a partir de intenções tão louváveis. O roteiro possui dificuldade em determinar seu ponto de vista. Seu protagonista oficial, o advogado Antônio (Alfred Enoch), não domina o olhar da trama, sendo esquecido na sala de casa durante longos dias. A história tampouco se conta pela perspectiva da esposa, a médica Capitu (Taís Araújo), nem de André (Seu Jorge), o primo malandro, militante das mídias sociais. Os sujeitos enviados à África serão ignorados pela trama, e os moradores das favelas, mencionados de passagem. 

O texto efetua a escolha curiosa de se focar nos personagens menos ativos na luta política que toma conta das ruas. Antônio constitui um herói frágil e inerte, contentando-se em esperar a poeira baixar enquanto a esposa grávida paira pelas ruas. Ela prega o amor ao próximo quando acolhida pelos membros do bunker cujas atividades diárias ou projetos de mobilização jamais se tornam claros. André grava os vídeos caseiros, publicando-os sabe-se lá como em meio à pane de Internet, e chegando a milhares de interlocutores sem rosto nem voz. 

A estratégia de se focar em pessoas alheias ao conflito central é comum no cinema clássico-narrativo: afinal, o espectador tem maior facilidade de se identificar com pessoas distantes da militância, passando, junto aos protagonistas, a compreender a pauta alheia até aderir à mesma. No entanto, Antônio, Capitu e André jamais se transformam, permanecendo na condição de heróis inertes. Eles são afetados pelas decisões, embora não provoquem, em si, os conflitos principais. Após o discurso em defesa da reparação histórica diante de uma Câmara vazia, o advogado simplesmente desiste da causa. Já o líder do coletivo escondido (Aldri Anunciação) possui um namorado branco, colaborador do fascismo, mas nunca pensa em dividir esta importante informação com os colegas de luta.

Goste-se ou não das escolhas de imagem e som de Lázaro Ramos, ou da maneira como dirige seus atores e apresenta seu discurso, é preciso reconhecer que Medida Provisória se destaca positivamente por gerar debate e mobilizar centenas de milhares de pessoas às salas de cinema.

Há inúmeras falhas de lógica e verossimilhança na fábula. Se os policiais perseguem pessoas negras nas florestas e nas salas de cirurgia, o que os impede de entrarem no apartamento onde se abriga o herói? Os policiais e militares negros não utilizam a força de que dispõem em nome da resistência? Possuindo estrito controle das mortes e deportações, como o governo poderia estimar que Antônio seria o “último melaninado do país”? Como os indivíduos reclusos mantêm a comunicação com o mundo exterior, e de que maneira Isabel (Adriana Esteves) coordena sozinha um plano nacional gigantesco a partir de um escritório minúsculo? O racismo institucional não seria contaminado por um sentimento igualmente machista, homofóbico, transfóbico? O texto dedica tempo excessivo a uma trinca de protagonistas fracos ao invés de detalhar a sociedade ao redor.

Por esta razão, os símbolos utilizados à exaustão jamais contaminam o texto de significado, limitando-se à condição de easter eggs. A trilha sonora traz Liniker, Elza Soares, Rincon Sapiência, Baco Exu do Blues, Cartola e Xênia França, enquanto as fotografias citam grandes pensadores, escritores e demais artistas negros. Estes pensamentos precisariam impregnar a narrativa, suscitar debate e reflexão (algo que Cabeça de Nêgo, 2020, faz muito bem, por exemplo). Entretanto, a narrativa avança com tamanha rapidez que os nomes destes grandes artistas se resumem a piscadelas oferecidas ao espectador mais atento.

A escolha do protagonista também desperta questionamentos. Alfred Enoch, ator anglo-brasileiro, demonstra dificuldades com a entonação do português, apesar da pronúncia impecável das palavras isoladas. É estranho que esta obra, defendendo a valorização de artistas negros brasileiros, seja capitaneada por um estrangeiro que grita numa sacada, a plenos pulmões, que “Este também é meu país”. A atuação do jovem é fraca, tantos nos discursos quanto no sentimento de impotência. Seria possível pensar em dezenas de atores brasileiros mais apropriados ao papel. Caso Enoch fosse uma celebridade incontestável, capaz de arrastar multidões às salas, a escolha se justificaria pelo pretexto comercial. Apesar de estar em ascensão em séries norte-americanas, este ainda não é o caso do intérprete.

Em paralelo, caberá aos atores verbalizar aquilo que a direção pensa: Antônio ganha discursos inflamados à mídia e aos políticos; Capitu transforma-se em liderança improvável de um movimento que acaba de abrigá-la; e André denuncia o cancelamento da reparação econômica pela escravidão, em uma das cenas mais desajeitadas de toda a trama, em frente a um banco. Em certa medida, a trinca apenas verbaliza algo que o filme já deixava claro o suficiente.

Tamanho didatismo prejudica a experiência. O texto se explica a cada instante, reincidindo nas mensagens e nas simbologias. O discurso do advogado a uma plateia vazia revela o descaso dos políticos com a fala de um homem negro. Ora, na cena seguinte, o vilão cartunesco debocha da demanda financeira de Antônio, a portas abertas. Capitu hesita em seguir com sua gravidez nesta situação caótica, sendo surpreendida duas vezes por sujeitos que a encorajam a ter o bebê (com direito a plano de detalhe do potencial abortivo de um medicamento). A direção não confia na capacidade do espectador em compreender interações menos explícitas — é preciso condicionar sua leitura e garantir a interpretação unívoca.

Em paralelo, as escolhas estéticas surpreendem pela incoerência. O estilo de uma sequência contradiz aquele empregue na cena anterior: os drones fornecem a impressão de amplitude no apartamento central, para em seguida, o encontro dos amigos ser mostrado através de incômodos planos de detalhe de olhos e bocas. A câmera chacoalha em excesso durante as perseguições, na tentativa de imprimir dinamismo. Já a montagem resulta no elemento mais problemático do conjunto, oferecendo cenas curtas demais, interrompidas antes de seu desfecho dramático pelo uso de fades banais, e dispersando a orientação dos sentidos ao invés de ordená-los. 

Fica difícil entender como Capitu pretende se esconder no centro da emboscada, ou como planeja sua fuga caminhando abertamente à luz do dia. Medida Provisória carece de um trabalho refinado de tempo e espaço: a montagem acelerada dos primos em casa não permite sentir o cansaço destes, e a localização imprecisa do esconderijo dificulta a construção de tensão — eles estão próximos das avenidas? Como entram e saem dali? Falta água e comida aos residentes? A direção segue por um caminho ilustrativo, pensando isoladamente na maneira de construir cena a cena, sem perceber que, uma vez reunidos, estes fragmentos parecem pertencer a filmes distintos. Isso explica porque as tiradas cômicas funcionam mal, apesar do talento evidente de Seu Jorge, e porque o reencontro final nunca surte o efeito desejado — afinal, Capitu e Antônio não pareciam sentir tanta falta um do outro.

Estes poréns serão deixados em segundo plano por diversos espectadores diante do final apoteótico. Trata-se de uma colagem de nomes e referências, síntese imagética do projeto como um todo. A música se inflama, o ritmo se acelera, os rostos de militantes e artistas ganham a tela. É evidente o posicionamento político do cineasta, assim como sua ojeriza ao atual governo, sem precisar mencionar o nome do atual presidente. Ele consegue inflamar uma massa de esquerda, a única propensa a prestigiar a obra de evidente caráter progressista, num ano-chave de eleições presidenciais.

Goste-se ou não das escolhas de imagem e som de Lázaro Ramos, ou da maneira como dirige seus atores e apresenta seu discurso, é preciso reconhecer que Medida Provisória se destaca positivamente por gerar debate e mobilizar centenas de milhares de pessoas às salas de cinema. Com a atual crise, e os ataques permanentes ao audiovisual brasileiro, esta é uma conquista significativa. Neste sentido, podemos divergir quanto aos meios, não ao final. Em seu trabalho hercúleo de divulgação em redes sociais, nos sites e na televisão, o artista produziu um fenômeno raro no cinema nacional contemporâneo — sobretudo, para um filme distante da comédia pastelão que costuma ter amplo faturamento de bilheteria. Há muito a festejar com o sucesso da empreitada.

Medida Provisória (2020)
4
Nota 4/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.