Autodeclarado constitui um belo exemplo de uma vertente específica do cinema documentário. Nestas obras, estima-se que a função do autor seria de discutir e esmiuçar seu tema em profundidade. No caso, Maurício Costa se debruça sobre o sistema de cotas, com foco no processo de autodeclaração dos candidatos que tentam ingressar numa faculdade, ou no serviço público, na condição de pretos ou pardos.
Neste quesito, o cineasta cumpre bem o seu intuito. O tema é explicado em detalhes, com clareza, esmiuçando a origem das ações afirmativas, seus obstáculos legais, o preconceito contra este tipo de ação, e as dificuldades de implementá-la. O espectador sai da sessão compreendendo termos como colorismo, essencialismo, pigmentocracia, afroconveniência, afrobege, pardo-preto, pardo-pardo, pardo-branco e a diferença fundamental entre preconceito de marca e preconceito de origem.
Dentro da estrutura convencional e desgastada dos talking heads, pode-se dizer que os autores efetuam um exemplar competente do gênero. Para quem deseja assistir a uma sucessão extensa de entrevistas, terá à disposição dezenas de especialistas e intelectuais dispostos a oferecer importantes reflexões sobre o tema. Visto pelo caráter pedagógico, que lhe parece primordial, o resultado serve como curso de introdução às relações raciais no Brasil.
Os problemas surgem quando se percebe que o cinema possui outra função, para além de uma aula. Muitas artes e formas de comunicação poderiam discutir a questão: o rádio, o podcast, o jornalismo se prestariam igualmente às ponderações desta natureza. No entanto, o cinema, enquanto arte, possui uma linguagem singular, baseada na capacidade de representar seu objeto de estudo, ao invés de falar sobre ele.
Ora, o filme brasileiro se situa num domínio descritivo, mencionando fatos ocorridos no passado. Comentam-se casos de infração à lei de cotas; falhas de avaliadores em júris; recusas da demanda de um garoto pardo em ingressar na universidade por este recurso. Os casos ocorreram no passado, e na ausência de provas, documentos, material de arquivo ou captação ao vivo destas ações, resta a escolha de comentá-las. A narrativa se mostra inteiramente descritiva e linear.
É difícil encontrar uma única imagem potente, à altura do som. Autodeclarado coloca o conteúdo acima da forma, razão pela qual as imagens servem meramente a rechear o tempo das falas.
Muitas possibilidades se apresentavam à equipe. Seria possível acompanhar jovens pretos e pardos durante o processo de admissão pelo sistema de cotas, e seguir o desfecho de seus pedidos em registro cúmplice. Poderiam visitar as universidades no primeiro dia de aula, investigando a inserção dos cotistas em relação aos demais estudantes. Poderiam solicitar o direito de filmar reuniões verídicas onde requerentes têm seus narizes, cabelos e tons de pele avaliados pelos membros da comissão.
Em contrapartida, o autor opta por uma questionável ficcionalização da entrevista de comprovação da identidade negra. O primeiro elemento delicado eticamente encontra-se em introduzir uma encenação roteirizada, de aparência documental. O segundo motivo de questionamento decorre da leitura exagerada, quase maniqueísta, dos avaliadores-personagens que se opõem à solicitação da garota parda. A frase “Qual é o seu voto?”, no final, explicita um debate óbvio até então, como se os artistas não tivessem confiança na capacidade de compreensão do espectador.
Como forma de dinamizar a experiência, o longa-metragem recorre a cartelas animadas a respeito da percepção racial, transformando igualmente as fotografias em traços desenhados. Apesar da beleza e competência desta ferramenta, ela desperta certo incômodo por clarear a pele dos homens e mulheres negros, antes de serem revelados de fato, com o tom de pele real. Além disso, a narração ex-ces-si-va-men-te em-pos-ta-da em off remete aos cursos de ensino à distância — um excelente curso, no caso, mas ainda assim, uma exposição escolar.
É difícil encontrar uma única imagem potente, à altura do som. Autodeclarado coloca o conteúdo acima da forma, razão pela qual as imagens servem meramente para rechear o tempo das falas. Pela mesma razão, a duração de duas horas comprova a prioridade temática em detrimento do ritmo e da experiência cinematográfica. Afinal, tendo em mãos entrevistas únicas, as captações e os cenários passam a se repetir, desgastando rapidamente o teor visual da obra.
O projeto desperta a impressão de ter sido motivado pelas entrevistas. Muitos diretores de documentários operam desta maneira: elegem um tema, partem para fazer dezenas de conversas com autoridades no assunto, e depois retornam com muitas horas de gravação à mesa de edição, decidindo então o que fazer deste material. Não há metáforas, poesia, recursos autorais de linguagem, oscilações de ritmo, nem atrito particular entre as falas. Apesar de discordâncias mínimas aqui e acolá, as dezenas de entrevistados se comunicam em uníssono.
Resta um documentário bastante satisfatório enquanto reportagem ou material didático, porém fraco na condição de obra de arte. O longa-metragem se torna refém da discussão, sem se impor a ela nem enxergar na iniciativa uma possibilidade de explorar linguagens. Ele se apequena quando se contenta em servir de panfleto à discussão, duvidando da capacidade do interlocutor em compreender subentendidos, ambiguidades. O cinema político pode ir muito além de um debate político filmado.