Autodeclarado (2022)

O debate filmado

título original (ano)
Autodeclarado (2022)
país
Brasil
gênero
Documentário
duração
117 minutos
direção
Maurício Costa
entrevistados
Luan Myque Figueira da Silva, Luciene Guimarães de Faria, Cristina Sousa, Bárbara Kruczyski, Janedson Almeida e Glaucielle Dias, Frei Davi, José Vicente, Benedito Gonçalves, Spartakus Santiago, Winnie Bueno, Natalino Salgado, Demétrio Magnoli
visto em
Cinemas

Autodeclarado constitui um belo exemplo de uma vertente específica do cinema documentário. Nestas obras, estima-se que a função do autor seria de discutir e esmiuçar seu tema em profundidade. No caso, Maurício Costa se debruça sobre o sistema de cotas, com foco no processo de autodeclaração dos candidatos que tentam ingressar numa faculdade, ou no serviço público, na condição de pretos ou pardos.

Neste quesito, o cineasta cumpre bem o seu intuito. O tema é explicado em detalhes, com clareza, esmiuçando a origem das ações afirmativas, seus obstáculos legais, o preconceito contra este tipo de ação, e as dificuldades de implementá-la. O espectador sai da sessão compreendendo termos como colorismo, essencialismo, pigmentocracia, afroconveniência, afrobege, pardo-preto, pardo-pardo, pardo-branco e a diferença fundamental entre preconceito de marca e preconceito de origem.

Dentro da estrutura convencional e desgastada dos talking heads, pode-se dizer que os autores efetuam um exemplar competente do gênero. Para quem deseja assistir a uma sucessão extensa de entrevistas, terá à disposição dezenas de especialistas e intelectuais dispostos a oferecer importantes reflexões sobre o tema. Visto pelo caráter pedagógico, que lhe parece primordial, o resultado serve como curso de introdução às relações raciais no Brasil.

Os problemas surgem quando se percebe que o cinema possui outra função, para além de uma aula. Muitas artes e formas de comunicação poderiam discutir a questão: o rádio, o podcast, o jornalismo se prestariam igualmente às ponderações desta natureza. No entanto, o cinema, enquanto arte, possui uma linguagem singular, baseada na capacidade de representar seu objeto de estudo, ao invés de falar sobre ele.

Ora, o filme brasileiro se situa num domínio descritivo, mencionando fatos ocorridos no passado. Comentam-se casos de infração à lei de cotas; falhas de avaliadores em júris; recusas da demanda de um garoto pardo em ingressar na universidade por este recurso. Os casos ocorreram no passado, e na ausência de provas, documentos, material de arquivo ou captação ao vivo destas ações, resta a escolha de comentá-las. A narrativa se mostra inteiramente descritiva e linear. 

É difícil encontrar uma única imagem potente, à altura do som. Autodeclarado coloca o conteúdo acima da forma, razão pela qual as imagens servem meramente a rechear o tempo das falas.

Muitas possibilidades se apresentavam à equipe. Seria possível acompanhar jovens pretos e pardos durante o processo de admissão pelo sistema de cotas, e seguir o desfecho de seus pedidos em registro cúmplice. Poderiam visitar as universidades no primeiro dia de aula, investigando a inserção dos cotistas em relação aos demais estudantes. Poderiam solicitar o direito de filmar reuniões verídicas onde requerentes têm seus narizes, cabelos e tons de pele avaliados pelos membros da comissão.

Em contrapartida, o autor opta por uma questionável ficcionalização da entrevista de comprovação da identidade negra. O primeiro elemento delicado eticamente encontra-se em introduzir uma encenação roteirizada, de aparência documental. O segundo motivo de questionamento decorre da leitura exagerada, quase maniqueísta, dos avaliadores-personagens que se opõem à solicitação da garota parda. A frase “Qual é o seu voto?”, no final, explicita um debate óbvio até então, como se os artistas não tivessem confiança na capacidade de compreensão do espectador.

Como forma de dinamizar a experiência, o longa-metragem recorre a cartelas animadas a respeito da percepção racial, transformando igualmente as fotografias em traços desenhados. Apesar da beleza e competência desta ferramenta, ela desperta certo incômodo por clarear a pele dos homens e mulheres negros, antes de serem revelados de fato, com o tom de pele real. Além disso, a narração ex-ces-si-va-men-te em-pos-ta-da em off remete aos cursos de ensino à distância — um excelente curso, no caso, mas ainda assim, uma exposição escolar.

É difícil encontrar uma única imagem potente, à altura do som. Autodeclarado coloca o conteúdo acima da forma, razão pela qual as imagens servem meramente para rechear o tempo das falas. Pela mesma razão, a duração de duas horas comprova a prioridade temática em detrimento do ritmo e da experiência cinematográfica. Afinal, tendo em mãos entrevistas únicas, as captações e os cenários passam a se repetir, desgastando rapidamente o teor visual da obra.

O projeto desperta a impressão de ter sido motivado pelas entrevistas. Muitos diretores de documentários operam desta maneira: elegem um tema, partem para fazer dezenas de conversas com autoridades no assunto, e depois retornam com muitas horas de gravação à mesa de edição, decidindo então o que fazer deste material. Não há metáforas, poesia, recursos autorais de linguagem, oscilações de ritmo, nem atrito particular entre as falas. Apesar de discordâncias mínimas aqui e acolá, as dezenas de entrevistados se comunicam em uníssono.

Resta um documentário bastante satisfatório enquanto reportagem ou material didático, porém fraco na condição de obra de arte. O longa-metragem se torna refém da discussão, sem se impor a ela nem enxergar na iniciativa uma possibilidade de explorar linguagens. Ele se apequena quando se contenta em servir de panfleto à discussão, duvidando da capacidade do interlocutor em compreender subentendidos, ambiguidades. O cinema político pode ir muito além de um debate político filmado.

Autodeclarado (2022)
5
Nota 5/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.