No Submundo de Moscou (2023)

Stanislavsky detetive

título original (ano)
Khitrovka. Znak Chetyryokh (2023)
país
Rússia
gênero
Comédia, Aventura, Suspense, Ação
duração
129 minutos
direção
Karen Shakhnazarov
elenco
Konstantin Kryukov, Mikhail Porechenkov, Anfisa Chernykh, Evgeny Stychkin, Aleksei Vertkov
visto em
Cinemas

Em nota à imprensa, o diretor Karen Shakhnazarov descreveu No Submundo de Moscou como um “filme de entretenimento”, “aventuresco”, “para o público relaxar e aproveitar o espetáculo em si”. O empreendimento custou o equivalente a R$ 10,7 milhões, que se traduzem em dezenas de cenários, centenas de figurantes, além de perseguições e cenas de luta. Além disso, adapta uma investigação criada por Arthur Conan Doyle, o idealizador de Sherlock Holmes, em versão adaptada à Rússia da virada do século XX.

Ao invés do investigador britânico, o roteiro prefere atribuir ao famoso dramaturgo e diretor de teatro, Konstantin Stanislavsky, o papel de detetive, quando ele presencia um assassinato ignorado pela polícia local. Junto do repórter Vladimir Guilyarovsky (outro personagem verídico da história russa), eles enfrentam a máfia conhecida por executar qualquer homem em seu caminho. Já o alvo da disputa consiste num valioso colar de pedras preciosas. Embora inicialmente efetue pesquisas para sua adaptação da peça Ralé, de Gorky, Stanislavsky deixa o projeto em segundo plano para priorizar a caça ao tesouro.

Estamos num território do artifício, do exagero e do romantismo. Apesar de o texto adaptar um episódio minimamente conectado ao real (aparentemente, os dois amigos de fato presenciaram um crime em sua época), ele abraça a extrapolação para efeitos de espetáculo. Isso implica no recurso à caricatura, tornando os heróis ainda mais belos (pois virtuosos) e os vilões um tanto asquerosos (pois malvados), enquanto os pobres se convertem em animais incivilizados, e os estrangeiros carregam uma dose de exotismo digna das telenovelas de Glória Perez.

Estamos num território do artifício, do exagero. Isso implica no recurso à caricatura, tornando os heróis ainda mais belos (pois virtuosos) e os vilões um tanto asquerosos (pois malvados), enquanto os pobres se convertem em animais incivilizados.

Este aspecto gera um problema evidente, em se tratando de uma produção do século XXI. Shakhnazarov começa por escolher um galã (Konstantin Kryukov) para viver o protagonista, e uma mulher fatal (Anfisa Chernykh) para a ladra-prostituta desejada por todos os homens. Ele se complica ao reproduzir o imaginário clássico de vilões com o rosto repleto de cicatrizes e, sobretudo, ao construir a figura de um aborígene, de baixa estatura e má-formação nos pés. Ostentando uma maquiagem pavorosa, o homem que não pronuncia uma palavra sequer será descrito como um bicho irracional, e tratado desta maneira tanto pelos personagens quanto pelo filme. 

No Submundo de Moscou não se limita a reproduzir as tramas investigativas de Sherlock Holmes, ele também resgata o preconceito de classe, gênero e raça que talvez passasse despercebido 120 anos atrás, mas que certamente não soa aceitável atualmente. A artificialidade desta construção se estende, de maneira assumida, à cidade com clara aparência de estúdio; às fontes luminosas que correspondem obviamente a refletores; às sequências de multidão intensamente coreografadas para o deslocamento da câmera; às estranhas lutas entre indivíduos que, até então, pareciam destituídos de qualquer habilidade para o combate.

A transformação de Stanislavsky em herói constitui a porta de entrada para esta fantasia assumida, como se o autor nos dissesse: “Se você puder aceitar esta licença poética, poderá aceitar todas as demais construções que eu oferecer”. O aspecto lúdico pode interessar, de fato: imagine uma perseguição brasileira comandada por Cândido Portinari? Tarsila do Amaral? Heitor Villa-Lobos? É certo que o roteiro nunca justifica o interesse profundo do artista pela caça às pistas, nem a disposição a se expor ao risco de morte em nome da descoberta do criminoso. Ao final, saberemos pouquíssimo da relevância de Stanislavsky, ou daquela de suas criações. 

Mesmo assim, a fusão de mundos aparentemente incompatíveis produz um aspecto lúdico que evocaria o cinema infantil, não fosse a quantidade generosa de cadáveres em estado de putrefação, espalhados ao longo da trama. Em termos de produção, estamos próximos da diversão mágica de Os Detetives do Prédio Azul ou Castelo Rá-Tim-Bum, em versão ainda mais endinheirada; embora os temas sejam maduros, envolvendo miseráveis e assassinos. Shakhnazarov estima que esta linguagem possa servir de apelo, igualmente, ao público adulto.

Aí se encontra o verdadeiro desafio do longa-metragem: vender uma visão juvenil de mundo ao espectador crescido, a partir de uma construção tão polida (no sentido de engajada em criar inúmeros cenários e figurinos) quanto absurda (vide o aspecto emborrachado dos corpos, a cor estranhamente marrom do sangue). Seguindo nas analogias brasileiras, este seria o equivalente de um grande filme de perseguição construído pela Globo Filmes, com humoristas encarnando os papéis principais. Você pode imaginar o potencial e os problemas de tal empreitada.

O resultado precisa ser compreendido em seu contexto específico. Trata-se de um autor consagrado, com passagens pela competição oficial do Festival de Cannes, aventurando-se em obras cada vez mais populares e extravagantes, como se testasse os limites de seu renome e de sua imaginação. Os resultados de bilheteria foram modestos na Rússia (cerca de metade dos custos de produção, sem considerar o investimento em marketing).

Entretanto, o filme revela a busca por um cinema de arte mais amplo, capaz de cativar o espectador do cinema independente pelas menções a Stanislavsky e Tchekhov, enquanto cativa o dito “público médio” pelas trapalhadas de personagens amadores em meio a uma conspiração internacional. A mistura nem sempre funciona, como se percebe. No entanto, representa a busca por um cinema do meio, nem amplamente cômico e exagerado, nem hermético e voltado aos festivais. Este elo fundamental entre os extremos, uma espécie de ponte unindo crítica e público, constitui um dos alvos mais importantes de qualquer cinematografia que se pretenda firmar enquanto indústria sólida e autônoma. 

No Submundo de Moscou (2023)
4
Nota 4/10

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