Tolos São os Outros (2022)

A mãe de todos os tabus

título original (ano)
Glupcy (2022)
país
Polônia, Romênia, Alemanha
gênero
Drama
duração
107 minutos
direção
Tomasz Wasilewski
elenco
Dorota Kolak, Lukasz Simlat, Tomasz Tyndyk, Katarzyna Herman, Marta Nieradkiewicz, Agnieszka Suchora
visto em
Cinemas

É difícil identificar, a princípio, os protagonistas desta narrativa e seus conflitos centrais. Os primeiros vinte minutos de Tolos São os Outros apresentam uma sucessão de cenas desconexas, entre o fantástico e o simbólico. Marlena (Dorota Kolak) vai à praia com as amigas, mas, na hora de entrar no mar, desiste e volta quase correndo. Depois, acorda no meio da noite e, ao abrir a porta de casa, descobre as ondas quase entrando no domicílio. O que está ocorrendo, de fato? Seria apenas um pesadelo?

A montagem se esforça em embaralhar as peças que poderiam ser dispostas de maneira muito mais linear, se desejado. Para além de inverter cronologias e misturar o real com o sonho, a editora Beata Walentowska inicia as cenas quanto os personagens já estão em atividade (desempenhando alguma tarefa que desconhecemos), encerrando-as antes de chegarem ao potencial dramático. Assistimos ao miolo das sequências, a parte central de alguma interação fortuita, ignorando as causas e consequências — ou suas motivações e seus efeitos práticos.

As imagens seguem um esquema igualmente impreciso (voluntariamente, é claro). O diretor de fotografia Oleg Mutu trabalha com uma janela ainda mais estreita do que o scope tradicional. Em outras palavras, apresenta imagens bastante retangulares, com grossas barras pretas horizontais acima e abaixo do enquadramento. Em consequência, reduz o escopo de visão quanto aos espaços e ao corpo dos atores, quase sempre reduzidos ao rosto e ao vislumbre do cenário ao redor. 

O diretor demonstra maior prazer em ocultar do que em revelar as circunstâncias de sua trama. A apreciação dependerá da capacidade do espectador em acompanhar estas figuras controversas sem julgá-las moralmente.

Pode-se dizer que o diretor Tomasz Wasilewski demonstra maior prazer em ocultar do que em revelar as circunstâncias de sua trama. Mesmo assim, com calma, algumas explicações chegam ao espectador, ainda que permaneçam zonas de sombra. Marlena faz partos, e vive isolada numa casa à beira-mar com o namorado Tomasz (Lukasz Simlat), muito mais jovem do que ela. É curioso que o cineasta empreste o próprio nome ao personagem masculino principal, que possui sua mesma faixa de idade. Até porque qualquer possibilidade de identificação soa delicada, em virtude dos tabus que invadem esta jornada a seguir.

Seria tentador revelar algumas reviravoltas essenciais, porém o cineasta faz o possível para retê-las o máximo possível, e a cena final contém a surpresa mais chocante de todas. Cabe dizer apenas que a trama abraça o filho adulto de Marlena, Mikolaj (Tomasz Tyndyk), um ex-dependente químico em fase catatônica, completamente dependente para a alimentação e a troca de fraldas. À revelia, Tomasz também cuida do rapaz de idade parecia com a sua, convertendo-se em pai simbólico.

Enquanto isso, o corpo representa um misto de alívio e punição. Exaustos, os personagens se aliviam no sexo, enquanto precisam limpar as fezes de um adulto no quarto ao lado. Choram, gritam, batem-se de propósito contra um armário. Sem conseguir interromper os gemidos de dor altíssimos do filho, Marlena gira, berra, buscando alguma forma de catarse. A própria filha surge em determinado momento, desejando beijá-la e tocá-la nas partes íntimas. Este gesto, por mais perturbador que seja, se justificará a partir da lógica muito particular do longa-metragem.

Wasilewski encontra na fantasia um distanciamento deste cenário desolador. Gaivotas invadem o quarto do homem enfermo, apesar das janelas e portas fechadas. As aves se recusam, então, a sair. Para fugir aos gritos de dor, Marlena corre à praia, apenas para encontrar barulhos de focas bastante semelhantes aos ruídos dos quais tentava escapar. Cria-se, portanto, a ideia de impossibilidade de fugir aos problemas. Surge um efeito labiríntico no interior dos enquadramentos apertados, e do silêncio tenso de personagens que nunca dizem o que pensam, nem estruturam com antecedência suas intenções.

Logo, Tolos São os Outros não visa divertir o espectador, nem lhe proporcionar uma recompensa emocional específica. A revelação final justifica algumas estranhezas prévias, porém desperta vários pontos de interrogação quanto aos fatos que se apresentavam até então. Aqui, os personagens agem apesar de nós, ao invés de para nós. Fecham-se numa dinâmica destrutiva cuja relação com o espectador seria totalmente diferente caso soubéssemos, desde o princípio, os motivos de seus silêncios e do esconderijo na cidadezinha litorânea.

Ao elenco, cabe um trabalho de grande intensidade e pesar, embora permaneçam herméticos. Compreendemos que carregam dores, culpas, vergonhas, medos, relacionados a fontes ocultas. O tom das atuações segue aquele do filme inteiro: grave, muito profissional e técnico, com evidente apuro visual e formal. Dorota Kolak e Lukasz Simlat possuem recursos de sobra para sugerir uma variação emocional preciosa a partir de um registro tão misterioso. São opacos, porém jamais minimalistas: percebemos o tempo inteiro que estão prestes a explodir.

O título original foi adotado internacionalmente: Glupcy, Fools, ou “Tolos”. Seriam eles, os “tolos” — uma palavra bastante singela para a importância de suas confidências. No Brasil, preferiu-se Tolos São os Outros, algo que desvirtua o sentido original e retira a doce ironia de atenuar a gravidade por ferramentas de linguagem lúdicas. Estranha escolha dos distribuidores locais. Já a apreciação da obra dependerá da capacidade do espectador em acompanhar estas figuras controversas sem julgá-las moralmente, nem exigir explicações desde o princípio. Caso se preste ao jogo de suposições, terá à sua frente figuras complexas, capazes de despertar bons debates pós-sessão.

Tolos São os Outros (2022)
6
Nota 6/10

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