Morcego Negro (2023)

Um filme falado

título original (ano)
Morcego Negro (2023)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
135 minutos
direção
Chaim Litewski, Cleisson Vidal
com
Fernando Collor de Melo, Thereza Collor, Fernando Henrique Cardoso, Renan Calheiros, Xico Sá
visto em
Cinemas

Seria importante partir de uma precisão: nenhum filme se sustenta unicamente pela relevância ou urgência de seu tema. Por mais importante que seja a discussão proposta, ou o debate levantado pelas entrevistas (no caso do documentário), a linguagem do cinema exige uma preocupação específica com a forma, o ritmo, as cores, as luzes, os sons. Toda forma de cinema, em suas diversas expressões, condiciona a percepção de sua qualidade ao trabalho a partir de aspectos essenciais da matéria audiovisual.

Por isso, no caso de Morcego Negro, cabe efetuar uma distinção entre aquilo que o filme discute, e aquilo que o filme mostra. Em primeiro lugar, vamos ao tema. O longa-metragem se debruça sobre a ascensão e queda de PC Farias, desde a aproximação com o clã Collor até o envolvimento em esquemas de corrupção e seu assassinato, em 1996. Ao contrário de um julgamento moral, os diretores Chaim Litewski e Cleisson Vidal preferem humanizar o protagonista, retratando a vida familiar, os amigos, as festas, os traços de personalidade. Assim, permite um retrato em terceira pessoa composto por contradições e percepções múltiplas deste homem.

Impressiona o acesso a personagens diretamente implicados no caos da política brasileira em fase de redemocratização. Os autores conversam com Fernando Collor de Mello, Thereza Collor, Fernando Henrique Cardoso, Renan Calheiros, além da filha de PC Farias. Permitem que estes narrem os fatos por sua perspectiva (extremamente benevolente e isenta de responsabilidade no caso do ex-presidente), confrontando-se adiante com falas de jornalistas e demais especialistas. A obra se presta a escutar “o outro lado”, ou pelo menos, as análises variadas da conjuntura política.

Os cineastas oferecem uma pesquisa bastante completa sobre o percurso de PC Farias. No entanto, nenhum material possui interesse minimamente próximo daquele obtido pelas falas. A imagem se torna refém do som.

O projeto inclusive se gaba de entrevistar “dezenas de pessoas que conheceram e conviveram com Farias”, conforme atesta a sinopse oficial, como se, quanto maior fosse o número de entrevistados, melhor fosse a investigação e, por extensão, melhor o filme destinado a representá-la. Os materiais de arquivo também são vastos, o que inclui um longo depoimento à CPI (quando PC Farias se apresenta e descreve sua trajetória pessoal, dispensando ao filme a tarefa de fazê-lo) e a novela censurada O Marajá, que fazia chacota da imagem idônea de Collor.

Neste sentido, os cineastas oferecem uma pesquisa bastante completa. Ao longo de mais de duas horas, seguem passo a passo deste percurso, retratando as derivas do poder que ainda soam muito atuais (a compra de apoio no Congresso, as alianças promíscuas com empreiteiras e doadores de campanha, a pauta do “fim da corrupção” enquanto marketing eleitoreiro, etc.). Há espaço para teses e antíteses, para especulações e fatos, para impressões pessoais e dados policiais. Quem mergulhar no filme unicamente pela vontade de se educar a respeito deste episódio, receberá informações detalhadas do xadrez governamental brasileiro nos anos 1980 e 1990. Ele cumpre com louvor sua “vocação pedagógica”, digamos.

No entanto, existe, igualmente, a análise estética. De que maneira tamanha investigação jornalística se traduz em imagens e sons? Neste quesito, Morcego Negro transparece suas debilidades. Trata-se de um documentário tradicional em estilo talking heads, ou seja, as famosas cabeças falantes. As conversas são intercaladas com material de arquivo, trechos de jornais e eventuais colagens a partir de fotografias. No entanto, as imagens basicamente exemplificam, ou recheiam, o conteúdo sonoro. 

Nenhum material ou filmagem possui interesse minimamente próximo daquele obtido pelas falas. A imagem se torna refém do som, precisando completá-lo, acompanhá-lo, de maneira redundante. Isso porque os cineastas optam por uma linguagem cronológica, linear e descritiva. “Paulo César fez, conheceu, foi, aliou-se”. Ele viajou, ele se encontrou, ele disse, ele prestou depoimento, ele fugiu, ele foi encontrado. A obra se contenta com a reconstituição dos fatos e das versões para a morte de PC Farias, transformando-se numa sucessão de verbos; num filme de ação. Ou ainda: um resumo robusto, preocupado em incluir o máximo de detalhes possível.

Os montadores Lea Van Steen e Pedro Asbeg se esforçam para introduzir variações de ritmo e tom. Efetuam passagens aceleradas entre sequências; efetuam cortes no interior do enquadramento, para simular a impressão de um novo ângulo durante as entrevistas; permitem trilhas sonoras que vão da música clássica ao pop-rock (até o contestável “Fernandinho Viadinho”, dos Garotos Podres). Enquanto os cineastas conduzem a aula-magna com a seriedade de bons pesquisadores, a edição se encarrega de tornar o resultado mais leve, agradável, ciente tanto peso do tema quando da extensão do debate. 

No entanto, é difícil disfarçar a simplicidade excessiva dos registros. As dezenas de entrevistas são registradas no esquema “uma fala, um plano”, de modo que cada personagem possui sempre o mesmo fundo, a mesma iluminação, o mesmo contexto. Passados trinta minutos de experiência, o documentário ainda tem muitíssimo a contar, embora não tenha muito mais a mostrar. As imagens se repetem, em ângulos idênticos, acreditando se legitimar pela importância das falas. As cenas aparentam dizer: “E quem se importa com estas cenas desinteressantes, já que as pessoas dizem coisas tão fortes?”.

Ora, uma coisa não substitui a outra. Morcego Negro desperta a impressão de uma enésima obra documental que estipula como prioridade inicial conversar com o maior número de pessoas ligadas ao caso. Depois, uma vez reunidas as diversas horas de material bruto, decidimos o que fazer na edição. A ausência de conceito estético por trás da empreitada enfraquece muito o resultado enquanto cinema. Ele aparenta ser mais apaixonado pela política do que pela estética, relegando à arte a mera tarefa de veículo de comunicação, destituído de regras ou exigências próprias.

É claro que esta configuração não diz respeito unicamente a este projeto, mas a dezenas de documentários produzidos anualmente no Brasil. A crença infundada de que o documentário possui responsabilidade com o fundo, porém não com a forma (“Era muito importante fazer um filme sobre este tema”, costumam justificar os criadores), gera uma série de produtos engessados, intercambiáveis, pouquíssimo ambiciosos enquanto linguagem. Despertam a noção equivocada de que documentários correspondem ao domínio da articulação, em detrimento de construção ou elaboração.

O cinema já encontrou inúmeras formas de romper com o preguiçoso talking head, que aproxima perigosamente o cinema da reportagem (dois domínios de vocação e intuito radicalmente diferentes). Isso vale também para as biografias de figuras importantes (vide os belos Othelo, o Grande, O Processo e Babenco — Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, para citar alguns). Como se pode retratar um episódio tão violento, sinistro, complexo da política nacional, através de um formato protocolar? Não caberia aos realizadores encontrar uma forma específica para o conteúdo encontrado? Uma maneira de representar as discussões, ao invés de meramente contá-las? De criar analogias, metáforas, fricções de imagem e som? Ora, o cinema, aqui, se desenvolve apenas pela metade.

Morcego Negro (2023)
5
Nota 5/10

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