Águas Profundas (2022)

O erotismo da violência

título original (ANO)
Deep Water (2022)
país / Gênero
EUA, Austrália / Suspense, Drama, Romance
duração
115 minutos
direção
Adrian Lyne
elenco
Ben Affleck, Ana de Armas, Tracy Letts, Grace Jenkins, Jacob Elordi, Finn Wittrock, Devyn A. Tyler, Brendan Miller, Kristen Connolly, Lil Rel Howery
visto em
Amazon Prime Video

Vic (Ben Affleck) é um sujeito amoral. O empresário riquíssimo despreza as noções de certo ou errado, agindo de maneira indiferente a estes conceitos. Talvez sua invenção tecnológica tenha provocado a morte de pessoas na guerra, mas prefere não pensar nisso. Ele afirma ter assassinado o amante da esposa, porém sem obter qualquer praze desta versão questionável dos fatos. Quando percebe sua amada se relacionando com outros homens na sua frente e diante dos olhares de convidados, deixa a cena acontecer. “Ela tem o direito de trazer quem quiser para casa”, argumenta. “Eu não faço esse tipo de perguntas para ela (sobre a intimidade com outros homens)”, explica a uma amiga.  

Melinda (Ana de Armas), por sua vez, é uma personagem imoral. Para ela, as noções de certo e errado importam muito, contanto que seja para subvertê-las de maneira escancarada, rebelde, juvenil. Ela faz questão de trair o marido diversas vezes, e depois relatar estes encontros sexuais. Ao perceber o incômodo do esposo, traz o amante em casa para o jantar, e obriga o primeiro a servir cordialmente o segundo. Diante do contentamento estoico do sujeito rico, a esposa perversa eleva o nível dos desafios gradualmente, buscando alguma faísca que rompa o comportamento glacial de Vic. 

Águas Profundas (2022) está repleto de violências, e as mortes constituem apenas a parte mais visível do iceberg. A principal agressão ocorre no interior do casal que se ama e se testa em igual medida, rumo à inevitável destruição. Ela se mostra cada vez mais libidinosa e extrovertida, e ele, cada vez mais tolerante, capaz de encontrar alternativas para o sentimento de ódio e ciúme. A narrativa, baseada no romance de Patricia Highsmith, decorre do jogo nocivo entre duas partes: aquela que adora atacar, e a outra, que ama se defender. No teatro de Strindberg, esse seria o equivalente à busca pela Mais Forte: quem realmente domina a situação? A figura que grita e dispara o seu ódio, ou a outra, capaz de escutar tamanhas provocações sem irritação?

À primeira vista, o relacionamento entre ambos poderia constituir apenas um exemplo contemporâneo de casamentos abertos, onde os cônjuges se permitem sair com outras pessoas. Seria possível, paralelamente, imaginar o fetiche voyeurista do marido em testemunhar os casos da esposa. Ora, nenhuma dessas leituras se confirma. Vic fica profundamente abalado a cada descoberta de traição, porém se vê incapaz de agir. Quando simula um gesto de sedução equivalente com outras mulheres, recebe uma punição grave de Melinda, equivalente à castração (quase literal). Apenas ela teria o direito de sair com outras pessoas.

Os melhores aspectos do longa-metragem decorrem de sua leitura enquanto suspense psicológico. Os protagonistas estão repletos de contradições, que não impedem a expressão do afeto real. Embora as mortes se empilhem, a figura de um vilão está ausente: somos levados a compreender os motivos de todos, seja o marido raivoso, a esposa provocadora, o vizinho intrusivo e a esposa benevolente deste. O espectador se converte em voyeur, possuindo acesso privilegiado a um laço profundamente tóxico que, à primeira vista, poderia soar funcional. Para quem observa de fora, Vic e Melinda compõem uma dupla incomum, porém saudável.

Infelizmente, tamanha riqueza psicológica se encontra com simbologias fraquíssimas, embaladas numa produção nível B.

Infelizmente, tamanha riqueza psicológica se encontra com um sem-número de simbologias fraquíssimas, embaladas numa produção nível B. A paixão do esposo por lesmas busca provocar sensualidade e letargia, mas a iluminação preciosa nos animais sugere um valor desproporcional. O diretor Adrian Lyne faz com que absolutamente todos os casos estejam envolvidos com afogamento, o que também inclui uma mala de viagens e um brinquedo na banheira. O investigador perigoso questiona Vic enquanto se posiciona sob os chifres de um animal selvagem, e Melinda é apresentada mordendo ferozmente uma maçã, numa representação precária do pecado original.

Ora, a lista continua: a trilha sonora se inicia com uma música contendo frases explicativas como “Nós dois não funcionamos”, antes de passar a The Lady Is a Tramp (“a dama é uma vagabunda”). A filha pequena, interpretada pela ótima Grace Jenkins, efetua perguntas que uma criança jamais pronunciaria, mas que soam convenientes ao roteiro (sinal da dificuldade dos escritores em escrever falas para uma garotinha pequena). Vic encontra carros e adversários por acaso, enquanto passeia pelas ruas — outra conveniência do texto. Já o cachorro é introduzido com tamanha atenção que aparenta anunciar uma função importante a seguir — seria ele o responsável por encontrar um cadáver? Entretanto, nada disso acontece.

O cineasta conduz suas cenas com um embaraço impressionante. As cenas de erotismo se limitam ao olhar alheio (a esposa percebendo o marido no fundo do corredor, ou este a presenciando à distância), e quando passam a algo mais concreto, Lyne parece não saber como conduzir os atores. Em se tratando de uma obra encomendada aos serviços de streaming, não precisaria se preocupar tanto com a classificação etária. No entanto, demonstra um pudor contraproducente em cenas curtíssimas, sem real desejo nem gozo. O prazer sexual teria sido importante para sustentar as atitudes da mulher e do homem. 

Águas Profundas transparece uma produção pouco cuidadosa, o que inclui cortes problemáticos da montagem, recursos pouco sofisticados de mixagem de som e um trabalho de luz incapaz de captar a sensualidade da casa durante os encontros de Melinda. Nos últimos quinze minutos, as ações se encadeiam com tal pressa e descuidado (vide a sequência do carro) que despertam risos involuntários. O erotismo pode combinar muito bem com as ferramentas específicas do filme B (o caráter exploitation, em particular), no entanto Lyne nunca sabe ao certo se sofistica sua trama a ponto de levá-la a toda a família enquanto suspense refinado, ou se abraça de vez o absurdo inerente ao desfecho.

No elenco, Ana de Armas apresenta um comprometimento intenso, ao ponto do maníaco, contrapondo-se de maneira eficaz com o torpor exagerado de Ben Affleck. É difícil imaginar que a dupla esteja junta há pelo menos nove anos, devido à idade da filha (como o erotismo deslocado deles se manifestava nos primeiros anos?). Tracy Letts compõe um estereótipo ambulante: o escritor arrogante que se acredita mais inteligente e superior aos outros. De certo modo, todos ali interpretam personagens de si mesmos, em versões exageradas por cima de identidades realmente complexas. É uma pena que, na dúvida entre se focar nas máscaras ou nas subjetividades por trás delas, o filme não explore a contento nenhuma das duas.

Águas Profundas (2022)
4
Nota 4/10

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