Era uma vez um capitão triste, que navegava durante longos meses sem uma companhia para aquecê-lo nas noites frias. A solidão lhe causava uma gastrite nervosa, até um colega sugerir que o casamento poderia trazer a cura para todas as feridas do coração e do estômago. Decidiu então se casar com a primeira moça que entrasse pela porta de um café. Chegou a moça. Ele propôs o matrimônio; ela aceitou. Então, para a surpresa do capitão, viveram infelizes para sempre.
A História da Minha Mulher se desenha como fábula. A extensa narrativa, de quase três horas de duração, divide-se em capítulos literários, ornados com títulos pomposos, a exemplo de “No labirinto chamado vida social”. Há inúmeros cenários, personagens, cidades, passagens de tempo. A direção percorre festas chiques, navios em alto mar, apartamentos de luxo, noites no teatro e na ópera. A cineasta Ildikó Enyedi possui grandes ambições ao retratar uma imensa jornada de ascensão e queda, ou ainda a crônica de um amor idealizado que se transforma na convivência destrutiva entre marido e mulher.
O material promocional se esforça em vender esta premissa enquanto algo sulfuroso e sensual. Tanto o cartaz nacional quanto o trailer (este último, excelente) vendem a obra enquanto triângulo amoroso envolvendo o capitão Jakob Störr (Gijs Naber), a esposa Lizzy (Léa Seydoux), e o playboy Dedin (Louis Garrel). Talvez o triângulo viesse a se transformar em quarteto, com a chegada da jovem Grete (Luna Wedler). No entanto, nada disso se confirma no resultado. Dedin e Grete possuem papéis pequenos, e nunca atraem o foco da obra para si. Servem como distrações, ao invés de elementos centrais de conflito.
A autora se preocupa unicamente com a dinâmica vacilante entre os protagonistas. Conforme atesta o título, a perspectiva se atém ao olhar masculino debruçado sobre a sexualidade feminina. A mulher misteriosa (quem aceita se casar de imediato, com um desconhecido?) se converte em objeto de adoração e medo. Ela parece deter tanto poder de decisão quanto o marido, algo perturbador para a sociedade patriarcal de décadas atrás. Manifesta com tranquilidade seus desejos e sua sexualidade. Tamanha liberdade se converte em perigo ao homem ausente de casa durante longos meses. Como ter certeza de que a bela esposa se mantém fiel?
Para uma aventura sobre traições e ciúmes, repleta de imagens extravagantes, surpreende o quão morno pode ser o resultado. Sem provocação de ordem estética, “sem sangue nas veias”, como acusa a esposa em relação ao marido apático.
Uma jornada de loucura e obsessão poderia se tornar interessante, caso Enyedi abraçasse o aspecto de suspense psicológico. No entanto, as regras do gênero nunca se instauram por completo. Resta uma boa parcela de romance tradicional, associada à pompa dos filmes históricos, onde as pessoas soam rígidas demais em suas falas, espremidas por roupas justas durante jantares da elite. Para uma aventura sobre traições e ciúmes, repleta de imagens extravagantes, surpreende o quão morno pode ser o resultado. Sem provocação de ordem estética, sem rebeldia nas formas, “sem sangue nas veias”, como acusa a esposa em relação ao marido apático.
Compreende-se o interesse dos atores neste projeto — não apenas pelo renome da cineasta, vencedora do Urso de Ouro em Berlim com Corpo e Alma, mas também pela possibilidade de abraçar personagens ambíguos, dotados de amplo desenvolvimento do início ao fim. No entanto, surpreende a opacidade das duas figuras que ocupam 90% do tempo de tela. Tanto Jakob quanto Lizzy resultam incompreensíveis, herméticos. Ao invés de manifestarem uma parcela de contradições comum a qualquer ser humano, tornam-se aleatórios.
Assim, é difícil entender por que a esposa convida o marido para um jantar com amigos, mas assim que o esposo chega, deixa-o na companhia dos desconhecidos para se sentar em outra mesa, sozinha. Não se entende ao certo de onde vêm tantos choros, acessos de fúria ou desejo sexual, já plenamente instalados quando a cena começa, e desprovidos de evolução ou desfecho no encerramento da sequência (a montagem não ajuda nesse sentido). A aproximação com Dedin soa dispersa, assim como a paixão abrupta do capitão por Grete. Sugere-se uma intensidade de sentimentos que precisaria de causas e consequências; de evolução e origens, além de um trabalho simbólico para produzir verossimilhança.
Ora, o drama afirma amores e desamores sem representá-los nem construí-los de fato. Salta-se no tempo inúmeras vezes, quando somos convidados a acreditar, sem reais indícios para tal, que Grete estaria disposta a passar um dia inteiro sob a chuva, esperando pelo grande amor de sua vida; que Jakob seria capaz de descer as escadas com uma barra de ferro, para atacar o possível amante de sua esposa, ou que Dedin se encontraria com Jakob num misto de sedução homoerótica, provocação e ajuda amigável. A diretora parece indecisa quanto ao objetivo de cada cena, algo que se transmite na interpretação do elenco.
Resta uma experiência desequilibrada, como se houvesse diferentes produtores e vozes querendo puxar o resultado para lados distintos: “mais romance!” diria um; “mais obsessão!”, reclamaria o outro; “lembre-se que ainda precisa ser um filme contemplativo de arte!”, apontaria o terceiro. Logo, a vivência em alto mar, fundamental ao terço inicial da trama, é abandonada por completo na parte seguinte. A tendência a somatizar a solidão através da dor de estômago também é deixada de lado. Lizzy, mulher-enigma, permanece em casa, sem amigos, sem familiares, sem ambições. Seduz a todo instante, sem saber ao certo o que pretende conquistar com tanta carga erótica. Os sentimentos dela por ele, e dele por ela, permanecem opacos.
Mesmo as metáforas luxuosas soam deslocadas, ou insistentes demais. O roteiro compara diversas vezes o casamento entre os protagonistas a um navio em perigo. Primeiro, na metáfora longa da embarcação em chamas, que serve para comparar Jakob a um herói. Segundo, nas conversas corriqueiras, do tipo “Como explicar que o navio não afunda, se é feito de aço?” para que, em seguida, os laços entre ambos afundem de fato. Pequenos símbolos, a exemplo do frasco de perfume, também perdem importância e significado a seguir. Passa-se repentinamente de uma sequência de sexo impessoal entre os dois para, com simples um corte da montagem, transarem com paixão.
A História da Minha Mulher constitui um projeto conceitualmente falho, porque sobrecarregado de interações destituídas do mínimo trabalho de tempo e espaço, de foco e objetivo. Até mesmo o final sobrenatural introduz um enésimo subgênero à obra que já vagava em busca de um tom preciso. Enquanto a produção carrega falhas evidentes, resta questionar o que a diretora teria a oferecer enquanto visão de mundo, nessa viagem do amor corrosivo que privilegia o olhar masculino, parcialmente perdoado e tolerado em nome da intensidade da paixão.