A História da Minha Mulher (2021)

Sem sangue nas veias

título original (ano)
A Feleségem Története (2021)
país
Hungria, Alemanha, França, Itália
gênero
Drama, Romance
duração
169 minutos
direção
Ildikó Enyedi
elenco
Gijs Naber, Léa Seydoux, Louis Garrel, Luna Wedler, Jasmine Trinca, Sergio Rubini, Josef Hader, Udo Samuel, Ulrich Matthes, Romane Bohringer, Sandor Funtek, Nayef Rashed, Simone Coppo
visto em
Cinemas

Era uma vez um capitão triste, que navegava durante longos meses sem uma companhia para aquecê-lo nas noites frias. A solidão lhe causava uma gastrite nervosa, até um colega sugerir que o casamento poderia trazer a cura para todas as feridas do coração e do estômago. Decidiu então se casar com a primeira moça que entrasse pela porta de um café. Chegou a moça. Ele propôs o matrimônio; ela aceitou. Então, para a surpresa do capitão, viveram infelizes para sempre.

A História da Minha Mulher se desenha como fábula. A extensa narrativa, de quase três horas de duração, divide-se em capítulos literários, ornados com títulos pomposos, a exemplo de “No labirinto chamado vida social”. Há inúmeros cenários, personagens, cidades, passagens de tempo. A direção percorre festas chiques, navios em alto mar, apartamentos de luxo, noites no teatro e na ópera. A cineasta Ildikó Enyedi possui grandes ambições ao retratar uma imensa jornada de ascensão e queda, ou ainda a crônica de um amor idealizado que se transforma na convivência destrutiva entre marido e mulher.

O material promocional se esforça em vender esta premissa enquanto algo sulfuroso e sensual. Tanto o cartaz nacional quanto o trailer (este último, excelente) vendem a obra enquanto triângulo amoroso envolvendo o capitão Jakob Störr (Gijs Naber), a esposa Lizzy (Léa Seydoux), e o playboy Dedin (Louis Garrel). Talvez o triângulo viesse a se transformar em quarteto, com a chegada da jovem Grete (Luna Wedler). No entanto, nada disso se confirma no resultado. Dedin e Grete possuem papéis pequenos, e nunca atraem o foco da obra para si. Servem como distrações, ao invés de elementos centrais de conflito.

A autora se preocupa unicamente com a dinâmica vacilante entre os protagonistas. Conforme atesta o título, a perspectiva se atém ao olhar masculino debruçado sobre a sexualidade feminina. A mulher misteriosa (quem aceita se casar de imediato, com um desconhecido?) se converte em objeto de adoração e medo. Ela parece deter tanto poder de decisão quanto o marido, algo perturbador para a sociedade patriarcal de décadas atrás. Manifesta com tranquilidade seus desejos e sua sexualidade. Tamanha liberdade se converte em perigo ao homem ausente de casa durante longos meses. Como ter certeza de que a bela esposa se mantém fiel?

Para uma aventura sobre traições e ciúmes, repleta de imagens extravagantes, surpreende o quão morno pode ser o resultado. Sem provocação de ordem estética, “sem sangue nas veias”, como acusa a esposa em relação ao marido apático.

Uma jornada de loucura e obsessão poderia se tornar interessante, caso Enyedi abraçasse o aspecto de suspense psicológico. No entanto, as regras do gênero nunca se instauram por completo. Resta uma boa parcela de romance tradicional, associada à pompa dos filmes históricos, onde as pessoas soam rígidas demais em suas falas, espremidas por roupas justas durante jantares da elite. Para uma aventura sobre traições e ciúmes, repleta de imagens extravagantes, surpreende o quão morno pode ser o resultado. Sem provocação de ordem estética, sem rebeldia nas formas, “sem sangue nas veias”, como acusa a esposa em relação ao marido apático.

Compreende-se o interesse dos atores neste projeto — não apenas pelo renome da cineasta, vencedora do Urso de Ouro em Berlim com Corpo e Alma, mas também pela possibilidade de abraçar personagens ambíguos, dotados de amplo desenvolvimento do início ao fim. No entanto, surpreende a opacidade das duas figuras que ocupam 90% do tempo de tela. Tanto Jakob quanto Lizzy resultam incompreensíveis, herméticos. Ao invés de manifestarem uma parcela de contradições comum a qualquer ser humano, tornam-se aleatórios.

Assim, é difícil entender por que a esposa convida o marido para um jantar com amigos, mas assim que o esposo chega, deixa-o na companhia dos desconhecidos para se sentar em outra mesa, sozinha. Não se entende ao certo de onde vêm tantos choros, acessos de fúria ou desejo sexual, já plenamente instalados quando a cena começa, e desprovidos de evolução ou desfecho no encerramento da sequência (a montagem não ajuda nesse sentido). A aproximação com Dedin soa dispersa, assim como a paixão abrupta do capitão por Grete. Sugere-se uma intensidade de sentimentos que precisaria de causas e consequências; de evolução e origens, além de um trabalho simbólico para produzir verossimilhança.

Ora, o drama afirma amores e desamores sem representá-los nem construí-los de fato. Salta-se no tempo inúmeras vezes, quando somos convidados a acreditar, sem reais indícios para tal, que Grete estaria disposta a passar um dia inteiro sob a chuva, esperando pelo grande amor de sua vida; que Jakob seria capaz de descer as escadas com uma barra de ferro, para atacar o possível amante de sua esposa, ou que Dedin se encontraria com Jakob num misto de sedução homoerótica, provocação e ajuda amigável. A diretora parece indecisa quanto ao objetivo de cada cena, algo que se transmite na interpretação do elenco.

Resta uma experiência desequilibrada, como se houvesse diferentes produtores e vozes querendo puxar o resultado para lados distintos: “mais romance!” diria um; “mais obsessão!”, reclamaria o outro; “lembre-se que ainda precisa ser um filme contemplativo de arte!”, apontaria o terceiro. Logo, a vivência em alto mar, fundamental ao terço inicial da trama, é abandonada por completo na parte seguinte. A tendência a somatizar a solidão através da dor de estômago também é deixada de lado. Lizzy, mulher-enigma, permanece em casa, sem amigos, sem familiares, sem ambições. Seduz a todo instante, sem saber ao certo o que pretende conquistar com tanta carga erótica. Os sentimentos dela por ele, e dele por ela, permanecem opacos.

Mesmo as metáforas luxuosas soam deslocadas, ou insistentes demais. O roteiro compara diversas vezes o casamento entre os protagonistas a um navio em perigo. Primeiro, na metáfora longa da embarcação em chamas, que serve para comparar Jakob a um herói. Segundo, nas conversas corriqueiras, do tipo “Como explicar que o navio não afunda, se é feito de aço?” para que, em seguida, os laços entre ambos afundem de fato. Pequenos símbolos, a exemplo do frasco de perfume, também perdem importância e significado a seguir. Passa-se repentinamente de uma sequência de sexo impessoal entre os dois para, com simples um corte da montagem, transarem com paixão.

A História da Minha Mulher constitui um projeto conceitualmente falho, porque sobrecarregado de interações destituídas do mínimo trabalho de tempo e espaço, de foco e objetivo. Até mesmo o final sobrenatural introduz um enésimo subgênero à obra que já vagava em busca de um tom preciso. Enquanto a produção carrega falhas evidentes, resta questionar o que a diretora teria a oferecer enquanto visão de mundo, nessa viagem do amor corrosivo que privilegia o olhar masculino, parcialmente perdoado e tolerado em nome da intensidade da paixão. 

A História da Minha Mulher (2021)
4
Nota 4/10

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