Quando decide fazer um filme a respeito de pregadores mirins, o cineasta Miguel Antunes Ramos adota uma postura de cumplicidade. Ao longo de quase dez anos, ele acompanha Daniel Pentecoste, da adolescência à fase adulta, além do pequeno João Vitor Ota, iniciando suas pregações aos sete anos. O diretor prefere passar tempo na casa de ambos, em detrimento dos cultos. No lar, observa as discussões sobre política, os estudos da Bíblia, a relação com os pais — em especial, os homens, em núcleos com pouca presença feminina. Observa os garotos se pentearem, colocarem terno e se prepararem para discursar a centenas de pessoas.
A Voz de Deus busca se aproximar da diferença, sem prejulgamentos. O ponto de vista da direção parece bastante distante do universo evangélico, no entanto, o cineasta se interessa por aquilo que (ainda) não conhece. Assim, efetua um movimento que a esquerda raramente se presta a fazer: conhecer o pensamento e o dia a dia dos religiosos, evitando o desprezo ou as críticas negativas em decorrência de sua visão de mundo. Por isso, não se pode esperar qualquer crítica, nem defesa deste universo. Ramos escolhe, em primeiro lugar, observá-lo. Embora nunca se coloque em cena, entrevistando ou conversando com os personagens, demonstra evidente empatia por ambos, perceptível pela maneira como são filmados.
O documentário foge tanto à sociologia quanto à psicologia. Em sua apreensão puramente fatual dos acontecimentos, recusa-se a analisar os pastores mirins enquanto fenômeno.
Trata-se, sem dúvida, de personagens excelentes. Acostumados a ser entrevistados e filmados, transparecem naturalidade diante do dispositivo. Enquanto Daniel se insere numa fase analógica, criando DVDs cujas vendas diminuem ano após ano, João Vitor se torna uma celebridade do YouTube. O primeiro questiona o que fazer para ser mais visto e descoberto; o segundo passa a vender roupas e demais produtos aos seus seguidores. A mercantilização da fé e o fenômeno dos influenciadores perpassa, ainda que discretamente, o escopo do discurso. É possível admirar o comprometimento, a oratória e o senso de responsabilidade dos protagonistas no que diz respeito a esta vocação — que se concordemos ou não com o conteúdo de suas falas.
Em contrapartida, o documentário foge tanto à sociologia quanto à psicologia. Em sua apreensão puramente fatual dos acontecimentos, recusa-se a analisar os pastores mirins enquanto fenômeno. Como surgem estes pregadores? O que leva uma criança de cinco anos (caso de Daniel) ou sete anos (para João Vitor) a decidir pregar? Que conhecimento ambos possuem acerca do evangelho? Foram pressionados ou estimulados pelos pais? Podemos considerar que sejam explorados pelos familiares, por trabalharem nesta idade? Como a Igreja fatura com estas pequenas celebridades, e de que modo os “gideõezinhos” são substituídos por outras crianças, quando crescem? Não temos resposta.
Numa cena, em especial, Daniel afirma que já fez xixi nas calças em público, fruto do nervosismo diante da plateia. Este seria um pequeno indício do estado emocional do garoto que, exceto pela breve menção, parece pregar mecanicamente, sem questionamentos. Quanto tempo sobra para brincar e estudar, aos garotos que ministram cultos diariamente? Já pensaram em desistir? Deixaram a fama subir à cabeça? Como a vizinhança e os demais parentes enxergam estes garotos? Qual a relação deles com os pastores adultos? Os pequenos já concebem um futuro na área? Querem se tornar pastores famosos, possuir sua própria igreja? Tampouco saberemos. Percebemos que nenhum dos dois enriquece graças à pregação, embora o filme evite questioná-los a respeito dos ganhos deste ofício.
A ausência de questionamentos se expande ao domínio explicitamente político da narrativa. A Voz de Deus presencia a defesa de Bolsonaro por parte do pai de Daniel, que distribui santinhos para seu candidato em praça pública. No entanto, o filho prefere Lula. Ora, como o pregador, inserido em meio ultra conservador, que vota majoritariamente pela extrema-direita, teria formado sua consciência política? Haveria algo valioso neste exemplo dissonante do religioso progressista. Mesmo assim, Ramos jamais analisa a consciência política de cada um, evitando, em paralelo, descobrir como a política afeta a família de João Vitor Ota. Sabe-se que Bolsonaro se elegeu em 2018, e Lula, em 2022. O projeto se dedica aos fatos, à constatação de uma realidade verificável.
Uma crítica possível a esta forma de cinema diz respeito à posição de refém daquilo que seus personagens decidem mostrar. Os dois pregadores oferecem muito aos criadores, entretanto, a equipe não busca completar as lacunas com aquilo que não lhe seja fornecido, de imediato, pela rotina dos garotos. Ainda que seja evidentemente respeitoso, o filme soa acanhado. Ninguém solicitaria que a direção tecesse críticas vorazes a quem quer que seja, somente que estudasse de fato o fenômeno que possui em mãos. É difícil simplesmente ignorar questões fundamentais relacionadas ao tema. (Aliás, a proibição do trabalho ao “missionário mirim” Miguel Oliveira, pelo Conselho Tutelar, deve ter ocorrido após a finalização do filme, mas explicita o quanto esta questão merece um debate em profundidade, e como estamos longe de destrinchar seus significados).
A Voz de Deus ainda se insere num formato muito cru de cinema documental, que tem sido praticado tanto por Miguel Antunes Ramos quanto pela parceira habitual, Alice Riff. Valorizando o presente e o acaso, eles não se importam se a luz das lâmpadas domésticas cria uma textura desfavorável, se a câmera treme em excesso durante alguma movimentação, O enquadramento soa ajustado na hora, na urgência, ao invés de previamente pensado. A noção de uma beleza convencional, decorrente de uma composição expressiva, de imagens e sons bem elaborados, passa longe deste cinema que coloca a importância do conteúdo acima do cuidado com a forma. Em suas cenas de convívio doméstico, o longa-metragem talvez não traga as imagens mais cuidadosas, porém, captura belos instantes de espontaneidade da criança e do adolescente.
Resta uma produção digna de interesse, ainda que soe como um olhar introdutório ao tema. Ramos perde a oportunidade de lançar hipóteses — o que seria muito diferente de fornecer conclusões ou ensinamentos, diga-se e passagem. O bom documentário seria aquele capaz de elaborar as boas perguntas, ao invés das apresentar respostas, ou seja, um filme capaz de se colocar em posição de atrito com o mundo. Ora, diante de um tema tão espinhoso, o cineasta evita a armadilha do julgamento moral, mas não elabora nem perguntas, nem respostas. Aborda os pastores mirins, símbolos de um país em transformação, com a placidez de quem se debruça sobre uma evidência, uma não-questão. Em nome da escuta e da harmonia, esvazia o tema de suas claras implicações político-sociais.