Afogamento Seco (2024)

Do risco à tragédia

título original (ano)
Drowning Dry (2024)
país
Lituânia, Letônia
gênero
Drama
duração
88 minutos
direção
Laurynas Bareiša
elenco
Gelminė Glemžaitė, Agnė Kaktaitė, Giedrius Kiela, Paulius Markevičius
visto em
48ª Mostra de São Paulo (2024)

Na cena inicial, Ernesta (Gelmine Glemzaite) chora pelo marido, um lutador de MMA. Ora, Lukas (Paulius Markevicius) acaba de vencer a luta, e não apresenta ferimentos graves. No entanto, ela teme pelo dia em que algo realmente sério acontecer a ele. Em seguida, eles dirigem até a casa de campo. Na estrada, o condutor tenta uma ultrapassagem arriscada, que quase termina numa colisão frontal. Felizmente, conseguem escapar ao pior. Lukas e o amigo Tomas (Giedrius Kiela) encenam uma luta, embora a esposa dele avise: “Cuidado, o hospital mais próximo fica a uma hora daqui”.

Afogamento Seco nos avisa constantemente dos perigos que estão por vir — e que, de fato, chegarão. Cada acidente de graves proporções é insinuado anteriormente, seja verbalmente, seja na versão reduzida dos danos. Ao encontrar as amigas, Ernesta escuta das colegas que seu marido teria forças para espancá-la, se quisesse. Juste (Agne Kaktaite) nega sexo ao esposo, e este provoca que, neste caso, seria obrigado a pegar a irmã dela à força. Em meio ao universo de cortesia e diversão, o cineasta Laurynas Bareisa introduz uma atmosfera de ameaça onipresente.

As antecipações não se limitam ao roteiro, contaminando igualmente a estética. Uma vez que as malas são retiradas do carro, a câmera se foca no porta-malas aberto, e efetua um zoom-in neste espaço vazio, sugerindo algum elemento assustador a partir do veículo. De noite, Ernesta se levanta da cama e agarra o corpo do marido, sentado. O enquadramento não nos permite dizer se eles estão se acariciando, se agredindo — até descobrimos se tratar de uma manobra habitual entre eles, visando estalar uma vértebra. 

Talvez constitua uma experiência hermética, por tratar da dessensibilização do espectador diante da dor alheia. No entanto, provoca nossos sentidos e nossa bússola moral.

A insistência no perigo pode tanto provocar o suspense constante quanto a anestesia — se tudo é tensão, nada o é. O diretor propõe um belo estudo de tons e de significados, pois, uma vez as mortes concretizadas, o espectador já sabia exatamente que aconteceriam. Neste sentido, ele retira dos acidentes (no plural) a sua catarse, o poder do choque, o sentido de algo inevitável. Algo tipicamente interpretado como fortuito se torna, na estrutura da ficção, uma garantia e promessa, desde o início. Assim, ao invés de brincar com os sentimentos do espectador, ele nos relaxa ou, pelo menos, atenua o impacto de conflitos brutais. O que sobra da empatia diante de uma tragédia anunciada?

Afogamento Seco vai além no seu dispositivo. Enquanto revela as mortes, a montagem rapidamente interrompe a cena, em pleno desenvolvimento, para saltar a muitos meses mais tarde. Sabemos exatamente quem faleceu, e em quais circunstâncias. Somos avisados dos fatos, podendo criar mentalmente a nossa variante. Ao mesmo tempo, o sumiço de pessoas que não pareciam estar em perigo nos retira algumas peças do quebra-cabeça: por que tal indivíduo seria mencionado como morto, se ele se encontrava longe de apuros no instante de crise?

Só então, entre idas e vindas no tempo, descobriremos a “versão do diretor” para a narrativa citada em palavras, encenada com carrinhos de brinquedo, e romantizada por terceiros (a família receptora dos órgãos). Neste momento, nada mais incomoda, nem mesmo a sequência envolvendo imensa estrutura de produção. Ainda assim, alguns planos específicos serão ocultados do espectador — nada de cadáveres visíveis. Bareisa desenvolve um filme inteiro a respeito da morte, porém, evita mostrá-la na realidade. Insinua diversas possibilidades de tragédia — no carro, na casa, no lago, na ambulância, na piscina — para concretizar apenas algumas delas. 

Este exercício de espectatorialidade e storytelling se baseia tanto na fragmentação cuidadosa da montagem quanto no generoso tempo dedicado à vida cotidiana dos dois casais. O cineasta é bastante hábil em fundir suas ameaças numa rotina perfeitamente plausível de classe média. As discussões entre marido e esposa, as provocações amigáveis, as danças e confissões das irmãs, a limpeza da casa e brincadeira das crianças, nos remetem a um contexto de normalidade. Os acontecimentos se tornam ainda mais estranhos (no sentido do estranhamento estético) graças ao confronto com tamanha crônica do banal.

O drama ainda demonstra excelente trabalho de atuações: salta aos olhos a naturalidade da conduta entre as irmãs, e o despojamento do corpo de ambos os homens — um dele, no ideal de força e potência, e o outro, sentindo-se em desvantagem, e querendo competir com o amigo. As crianças talvez fiquem em segundo plano (o drama evita colocá-las em cenas realmente desafiadoras, preferindo filmar à distância, ou de costas). No entanto, o quarteto adulto se entrega a um naturalismo que soaria incompatível com a insistência trágica no horizonte.

O resultado ainda deslumbra pelo trabalho de fotografia, assinado pelo próprio cineasta. Trabalhando a partir de planos fixos, ele evita imprimir um dinamismo artificial imagens tremidas e planos de detalhe. É muito mais assustador testemunhar um afogamento à distância, numa sequência sem cortes, percebendo que o corpo submerso não volta à superfície. O trabalho de luzes no fim da tarde (com as amigas da associação) e à noite (na parte externa, com os pais) se destaca, assim como o cuidado cirúrgico na escolha de ângulos e duração dos planos ao revelar o aguardado acidente.

Por fim, Afogamento Seco talvez constitua uma experiência hermética, por tratar da dessensibilização do espectador diante da dor alheia. No entanto, provoca nossos sentidos e nossa bússola moral, ao deslocar as questões de tempo e espaço, atribuindo ao espectador um poder incomum diante da narrativa. Se soubermos exatamente quando pessoas morrerão, e de qual maneira, devemos nos sentir mal desconfortáveis, ou mesmo incomodados, quando tais ações finalmente ocorrem diante dos nossos olhos? Como nos posicionar face a uma perda inestimável e sem culpados, ainda que o roteiro sublinhe que os perigos que poderiam ser evitados? O filme não fornece respostas, porém formula as melhores e mais complexas perguntas.

Afogamento Seco (2024)
8
Nota 8/10

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