Além da Lenda (2022)

Brasileirismos

título original (ano)
Além da Lenda (2022)
País
Brasil
gênero
Animação, Comédia, Fantasia
duração
86 minutos
direção
Marília Mafé, Marcos França
vozes originais
Gabriel Leone, Hugo Bonemer, Marcello Trigo, Bruna Cortez, Robson Ugo, Írina França, Jr Black e Pablo Ferreira, Anderson Macário, Gabriela Melo, Alex Lima, Mônica Feijó
visto em
Cinemas

Além da Lenda provoca uma bela impressão inicial. Em primeiro lugar, devido ao caráter assumidamente caricatural, avesso ao naturalismo. Os personagens possuem vozes cartunescas, exageradas, lançando o espectador de imediato num universo dotado de regras e estilo próprios. O traço do desenho, a construção dos cenários e dos movimentos nos alertam quanto ao tipo de animação à nossa frente — no caso, um projeto infantil, ágil, dotado de malícia e senso de autoironia.

Em segundo lugar, é fundamental nos depararmos com tal pluralidade de vozes e construções de personalidade. Há sotaques de diferentes estados nordestinos, junto ao palavreado sulista, criando uma representação mais ampla do país. Como os criadores buscam abordar as principais lendas brasileiras, é importante que estas figuras contenham um panorama vasto de expressões e empostações disponíveis em nosso território. Os dubladores se mostram bastante confortáveis com este tipo particular de interpretação.

Em paralelo, o público poderá identificar uma cultura cotidiana impressa nas imagens, o que ultrapassa a menção ao folclore. A festa de aniversário traz bolo, guaraná e brigadeiros; o cavalo adora comer mangas; e um robô emite frases como “Isso é treta do passado. Agora sou seu comparsa, mãinha”. Caso viesse de uma dublagem, o texto poderia despertar curiosidade quanto às falas originais. Em se tratando de uma obra brasileira, a frase se encaixa bem na representação das diferenças regionais. (Os eventuais dubladores de países estrangeiros que se virem para encontrar equivalências em suas terras).

Cabe dizer que o foco em lendas nacionais suscita interesse, porém não sustenta valor em si. Em outras palavras, é ótimo encontrar uma animação contendo Saci, Curupira, Cuca, Boto, Negrinho do Pastoreio, Cabra Cabriola, Comadre Florzinha e outros. No entanto, estas figuras poderiam ser bem ou mal representadas, de maneira mais ou menos expressiva. Neste caso, os criadores apresentam uma visão pessoal dos mitos: Saci se converte num garoto despojado, em estilo reggae, o Boto se assemelha a um conquistador decadente e Florzinha (ou Fulozinha) tira sujeira do nariz e dos dentes.

Deste modo, a aventura ultrapassa a condição de mera homenagem e de resgate destes personagens. Eles ganham uma leitura própria, assumidamente brincalhona, e capaz de se modificar ao longo da trama: graças a um livro mágico, os rabiscos nas páginas fazem com que os heróis tenham seus corpos e vozes modificados. Os diretores Marília Mafé e Marcos França se divertem com a subversão do imaginário popular, apenas para reforçar as características básicas de cada um ao final — uma estratégia lúdica e inteligente de articular tradição e modernidade.

Além da Lenda transmite uma forma de estranhamento em relação ao produto estrangeiro, de maneira muito mais politizada do que a média das animações.

Chama a atenção, em paralelo, a presença de vilões derivados da cultura norte-americana. O “Trio Halloween” é composto por esqueletos, abóboras e outros ícones das festas estrangeiras, que buscam aniquilar os heróis brasileiros. Apesar do tom conciliador das diferenças rumo ao final, pode-se enxergar uma crítica ao colonialismo neste procedimento: enquanto os gringos são associados ao espetáculo (trata-se de grupo de roqueiros), as nossas lendas estão associadas à natureza. Por este aspecto, Além da Lenda transmite uma forma de estranhamento em relação ao produto estrangeiro, de maneira muito mais politizada do que a média das animações.

A narrativa se desenvolve em torno de uma jornada bastante simples, no estilo dos desenhos de algumas décadas atrás: os heróis são figuras inerentemente boas, apesar de atrapalhadas, enfrentando representações absolutas do mal. Apesar do flashback explicando a origem das atitudes de Witchka, o trio de adversários se converte em mera oposição aos protagonistas, numa ilustração idealizada do mal. Apesar da presença de celulares e selfies, esta batalha maniqueísta remete aos projetos de um período anterior ao século XXI: vilões e mocinhos se opõem menos por um confronto de vontades opostas do que por uma divergência ética essencial.

Outros fatores reduzem o potencial da experiência: a introdução possui cenas curtas até demais, num ritmo disperso de apresentação de personagens e dilemas; o sumiço de Baio e sua utilização no final soam fortuitos, apenas convenientes à narrativa; e a voz americanizada dos robôs estrangeiros dificulta a compreensão das falas. Mesmo o show de rock possui aparência pouco verossímil, tanto em propósito quanto em execução. No entanto, parte destes aspectos se justifica pelo aspecto lúdico e inconsequente das ações.

O longa-metragem parte de uma ideia forte: caso as pessoas não se lembrem das lendas, elas desaparecem. A afirmação deposita uma potência notável na cultura popular, na transmissão oral e nos livros, a exemplo do objeto mágico deste filme. No entanto, surpreende que Saci, Curupira e outros corram o risco de desaparecer apenas para si próprios, e não para humanos como Nicole e Lucas. Jamais investigamos o impacto do eventual sumiço na memória coletiva e social. O texto aborda um esquecimento provocado pelos vilões, como forma de ataque, ao invés do abandono por parte dos cidadãos brasileiros.

No que diz respeito à construção estética, a animação promove um agenciamento simples, com fundos levemente desfocados em relação aos personagens, por onde passeiam figuras coloridas de rostos expressivos, priorizados pelos enquadramentos em relação aos espaços. As pequenas ousadias de linguagem (o universo menos saturado nas visões do Negrinho do Pastoreio, o espiral multicolorido com Witchka) são raras, e jamais contaminam o projeto em sua totalidade. Resta uma narrativa linear e clássica, que poderia radicalizar mais, inclusive na ilustração do poder de seus personagens (caso notável do Saci).

No final, resta a felicidade de encontrar uma bela animação nacional — a primeira realizada em Pernambuco —, manifestando intensa preocupação em retratar o Brasil nas telas. Espera-se que Além da Lenda chegue ao mundo inteiro, porém percebe-se que a preocupação se encontra, sobretudo, no público brasileiro. Projetos como este permitem vislumbrar um futuro próximo contendo obras ainda mais ambiciosas em termos estéticos e narrativos e, se possível, mais frequentes no circuito comercial.

PS: Assista à entrevista com o roteirista Erickson Marinho sobre dublagem e vozes originais:

Além da Lenda (2022)
6
Nota 6/10

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