Armageddon Time (2022)

Racismo e outras lamentações

título original (ano)
Armageddon Time (2022)
país
EUA, Brasil
gênero
Drama
duração
115 minutos
direção
James Gray
elenco
Anthony Hopkins, Jeremy Strong, Anne Hathaway, Banks Repeta, Jaylin Webb, Ryan Sell
visto em
Cinemas

Curiosamente, chegamos ao momento em que os diretores de meia-idade, consagrados e reconhecidos em suas áreas (muitos deles por produções grandiosas), decidem efetuar pequenas obras a respeito de sua infância e juventude. Paul Thomas Anderson com Licorice Pizza, Steven Spielberg com The Fabelmans, Alfonso Cuarón com Roma e Kenneth Branagh com Belfast se debruçaram em instantes agridoces dos lugares onde cresceram, recriando dinâmicas familiares. Agora, James Gray se une ao grupo em Armageddon Time

Em comum com as outras obras, adota um teor melancólico, mesclando anedotas divertidas do cotidiano familiar com dores mais profundas da passagem à fase adulta. Os pequenos dilemas individuais, partindo de um garoto incapaz de compreender o momento político, se unem às grandes reviravoltas da nação. Aqui, Paul Graff (Banks Repeta) é um pré-adolescente rebelde, de uma família de classe média-alta, testando os limites da autoridade paterna e materna enquanto Ronald Reagan assume a presidência e a dinastia Trump se anuncia no horizonte.

O diretor sabe coordenar o elenco, e encontra os principais méritos do drama na dinâmica de refeições à mesa. Anthony Hopkins está excelente como o avô judeu, que sofreu de perto a perseguição às minorias, e descobre a própria família sendo tomada pelo racismo crescente. Jeremy Strong e Anne Hathaway também compõem cenas cujo exagero ocasional se deve ao ponto de vista do menino — o ataque do pai violento na banheira se assemelha a uma cena de terror. Gray sabe posicionar a câmera junto à perspectiva plena de vigor do garoto.

A estética acompanha o olhar plácido e cúmplice através de planos distanciados, de pouco movimento. Assim, ele valoriza o trabalho dos atores sem chamar atenção excessiva a si próprio, enquanto minimiza o teor sentimental de uma trama envolvendo mortes, brigas e prisões injustas. O cineasta prefere o torpor de quem atravessa um momento de transformação sem percebê-lo, por estar inserido demais no furacão para analisá-lo com o mínimo distanciamento. Esta é uma trajetória de carinhos, no sentido íntimo, mas também de ignorâncias, numa esfera macro.

O racismo é apresentado por uma perspectiva branca, alheia ao ponto de vista das vítimas, e sem real envolvimento nas causas ou consequências do fenômeno.

Este aspecto se torna responsável pelos pontos menos interessantes do longa-metragem. O texto denuncia o crescimento da intolerância contra judeus, mas sobretudo contra negros nos subúrbios norte-americanos. Ora, o tema é apresentado por uma perspectiva branca, alheia ao ponto de vista das vítimas, e sem real envolvimento nas causas ou consequências do fenômeno. Seja pelo posicionamento de Gray, seja pela ingenuidade de Paul, o filme se contenta em lamentar a existência de discriminações, resignando-se, entretanto, à constatação de que sociedades funcionam assim mesmo. “A vida é injusta”, repete o pai.

Armageddon Time foi acusado de racismo, em comentários mais extremados, e ainda de omissão e conformismo com o preconceito racial, em críticas mais repletas de nuances. Certo, a narrativa denuncia este comportamento de maneira inequívoca. Entretanto, ela o faz sem se importar de fato com o pequeno Johnny (Jaylin Webb) e sua família. O garoto órfão e pobre, que vive se escondendo dos serviços sociais, serve para que Paul aprenda sobre a existência de minorias — em outras palavras, o racismo é abordado enquanto aprendizado de valores e virtudes para os grupos brancos.

O menino nunca adquire protagonismo, nem uma complexidade psicológica comparável àquela de Paul e dos demais coadjuvantes brancos. O sintoma mais flagrante do tratamento acessório do estudante negro ocorre rumo à conclusão, quando o roteiro simplesmente o abandona, uma vez concluído o aprendizado do jovem branco. O que será do rapaz fugitivo? Quem se importa? A omissão de Paul diante de um ato de injustiça pode ser compreendida pela incapacidade infantil de enfrentar dilemas complexos. No entanto, a passividade do pai (Jeremy Strong) e do próprio roteiro diante do ocorrido demonstra o desprezo pelo episódio.

A incômoda cena final acena ao possível despertar político do menino judeu. Inserido numa escola burguesa e republicana, ele se sente desconfortável com o discurso elitista e abandona uma reunião para respirar outros ares na rua. A trilha sonora apela a um reggae, ritmo de origem negra, ao rosto do jovem privilegiado, como se ele tivesse incorporado a cultura e a vivência do colega injustiçado pela polícia. A montagem interrompe abruptamente a narrativa, dando a educação moral de Paul por completa. Ele precisava conhecer a miséria do mundo, a desigualdade social, para passar à fase adulta. O racismo é visto menos como um elemento social do que uma oportunidade preciosa de aprendizado ao menino branco.

Ora, esta representação plácida tem sido desculpada pela quantidade de afeto depositado nos personagens centrais, e pelo aspecto de nostalgia controlada, não idealizada. O filme está repleto de imagens de cor pastel, bordas escurecidas para valorizar o garoto ao centro, e cenas brilhantes, a exemplo do lançamento de foguete com o avô no parque. Em outras palavras, o diretor de produções grandes sabe voltar às narrativas intimistas (algo que Sam Mendes, no recente Império da Luz, demonstrou muito mais dificuldade em fazer). Existe um diretor maduro por trás das imagens de Armageddon Time.

Talvez por isso seja tão desconfortável se deparar com a representação no mínimo ingênua, e pouco despolitizada, das minorias nos Estados Unidos. Com exceção do excelente Ad Astra: Rumo às Estrelas (2019), Gray tem minimizado sofrimentos e dores alheias dentro de um classicismo cada vez mais neutro, a exemplo de Era uma Vez em Nova York (2013) e Z: A Cidade Perdida (2016), duas tramas em que o sofrimento de terceiros serve de marcante lição de vida ao protagonista. Enquanto posicionamento e visão de mundo, trata-se de abordagens frágeis — ou “delicadas”, como preferem apontar algumas vozes. Na onda de filmes ternos sobre a infância de seus diretores, talvez esta represente uma das obras menos marcantes.

Armageddon Time (2022)
5
Nota 5/10

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