No papel, a premissa soa tentadora. Em 1961, um garotinho embarca nas mentiras do pai, que promete ser um agente infiltrado da CIA, ou então um paraquedista e ainda um antigo músico, pioneiro da canção francesa. O pai lhe fornece missões políticas para manter a Argélia sob domínio francês, o que faz o menino se sentir um verdadeiro soldado. As invenções provocam um senso de aventura ao garoto, em moldes que talvez lembrem A Vida É Bela (1997), pela lógica das ilusões proporcionadas por gente de bom coração.
A estética corrobora esta sensação inicial. O filme é repleto de cores bege e marrons, além de casas com papéis de parede estampados, pijamas listrados, uniformes escolares. Há uma sensação de familiaridade, de cotidiano banal e acolhedor, o que inclui diversas cenas com pai e mãe à mesa, brincadeiras com os amigos, etc. Paira um teor cômodo, avesso à urgência das guerras ou ao suspense das tramas políticas. A estética sugere uma brincadeira gostosa no tapete de casa, entre um adulto e uma criança, ambos dotados de grande imaginação.
Ora, As Histórias de Meu Pai não tarda a revelar um lado muito mais sinistro. Primeiro, pelo comportamento do pai. Cena após cena, André Choulans (Benoît Poelvoorde) humilha a esposa e o filho, agredindo a ambos com frequência, com a desculpa do direito masculino sobre a honra da mulher e a educação do filho. Pelo olhar do diretor Jean-Pierre Améris, o machismo exacerbado 60 anos atrás se converte numa sequência ininterrupta de terror. Imagine o excelente Custódia (2017), porém apenas com as cenas de tortura do pai ao garoto, ou seja, sem contraponto nem respiro.
Como o drama adota o ponto de vista do menino Émile, seria normal que eventos fossem exagerados ou deturpados pela memória afetiva. No entanto, na hora da violência, a câmera se posiciona de maneira externa, objetiva, meramente observando os atos. Não existe qualquer recurso à ludicidade infantil para atenuar os tapas, puxões e gritos, ou sugeri-los de maneira metafórica. O diretor aposta numa abordagem direta, repetitiva e mesmo cruel, tanto com os personagens quanto com os espectadores, que têm pouco a elaborar após a enésima cena com o pai ensinando o pequeno a “se preparar para a guerra”.
Cena após cena, André humilha a esposa e o filho, agredindo a ambos com frequência, com a desculpa do direito masculino sobre a honra da mulher e a educação do filho.
Esta configuração seria o prato cheio para uma crítica social, uma descrição sobre a geração traumatizada pelo autoritarismo paterno. Curiosamente, Améris desenvolve a fábula amarga sem qualquer relação com a sociedade mais ampla, no presente ou no passado. A vivência de Émile é descrita como um caso excepcional, pessoal, aparentemente desconectado de experiências de amigos e vizinhos. Por acaso, houve certo dia um pai delirante e paranoico, que estimulava no filho um ódio descabido contra inimigos imaginários. Parece não haver lição nenhuma a retirar deste episódio.
Se há um aspecto positivo na obra, ela se encontra na bela atuação de Jules Lefebvre. O pequeno protagonista possui uma variação preciosa de emoções expressas apenas no olhar, entre admiração, medo, raiva, dúvida. Quando precisa gritar de igual para igual com um veterano do porte de Poelvoorde, o garoto segura a cena com o talento de um profissional. A direção evita enxergar nele uma pobre vítima, preferindo fazer com que o garoto descubra sua autonomia ao matar, simbolicamente, este pai opressor dentro de si.
Neste sentido estrito das relações paternas, As Histórias de Meu Pai possui qualidades. É evidente a vontade do garoto em impressionar o pai, provar-se adulto, inserir-se na sociedade e fazer parte de algum movimento maior do que si próprio. Ele não tarda a reproduzir, com o colega argelino da escola, as tendências delirantes que enxerga no ídolo paterno. O desencantamento com a figura que idolatrava consiste num trauma parcialmente bem resolvido pela trama, que infelizmente salta dezenas de anos para fugir ao retrato das consequências psicológicas.
No entanto, o final destrói qualquer traço de otimismo rumo à conclusão. Neste instante, o filme força um final feliz, quando o pai tirânico será desculpado em todos os seus atos porque era irresponsável, e “não sabia o que fazia”, em moldes bastante cristãos. Nenhum tipo de responsabilização legal, moral, ética ou simbólica recai sobre este indivíduo, por quem o roteiro demonstra piedade e ternura. “Pais são assim mesmo”, ou, “Apesar de tudo, ele ainda é seu pai”, insiste o discurso. A minimização dos abusos soa anacrônica para um filme de 2020.
Pior ainda é o timing encontrado pelos distribuidores para o lançamento desta obra permissiva com delírios e invenções de sujeitos conservadores de meia-idade. Embora se passe na França dos anos 1960, a fábula estabelece conexões diretas com o Brasil atual. Não é difícil encontrar na trama de um homem que mantém armas em casa, cria teorias da conspiração e divulga documentos falsos, utilizando pessoas frágeis e ingênuas como margem de manobra, uma representação do bolsonarismo.
O drama chega aos cinemas pouco após a invasão do Parlamento, da Câmara e do Senado, quando indivíduos enlouquecidos, munidos por teorias falsas e medos imaginários, não muito diferentes de André, depredaram o patrimônio e os símbolos da república. Nos últimos dias de janeiro de 2023, um dos maiores atletas do vôlei brasileiro defendeu nas redes sociais que o presidente Lula fosse morto com um tiro na cara. Na trama fictícia, Émile alimenta a pretensão de assassinar o presidente, general De Gaulle, com um tiro.
Os nervos estão sensíveis para tais temas, sobretudo face a uma abordagem gentil e condescendente com conspiradores. No caso francês, sugere-se que sejam perdoados (ou anistiados) devido ao fato que estão loucos, apenas se empolgaram, mas, no fundo, eram munidos de um dever patriótico compreensível. As Histórias de Meu Pai mostra-se um filme conivente com a violência retratada, e transformada em episódio banal na infância do protagonista. Ele se torna ainda mais questionável quando se escolhe, três anos após a estreia em seu país de origem, lançá-lo nos cinemas brasileiros no exato instante em que a extrema-direita clama por anistia aos golpistas.