As Muitas Mortes de Antônio Parreiras (2025)

Embaralhar o real

título original (ano)
As Muitas Mortes de Antônio Parreiras (2025)
país
Brasil
linguagem
Biografia, Experimental
duração
65 minutos
direção
Lucas Parente
elenco
Pepe Bertarelli, Ana Abbott, Alex Nanin, Leo Pyrata
visto em
28ª Mostra de Tiradentes (2025)

Eis um subgênero que talvez o cinema brasileiro nem suspeitava que precisasse tanto: a biografia experimental. As dezenas de documentários biográficos que chegam às salas nacionais a cada ano (além de algumas ficções) se sentem na obrigação de honrar uma pessoa querida, de estar à altura dela. Querem deixar clara a sua paixão, destacando os feitos do personagem para justificar, assim, a própria empreitada cinematográfica — já que poucos filmes são dedicados a pessoas detestadas por seus autores.

Por isso, o formato tão prolífico quanto desgastado costuma repetir as iniciativas elogiosas, mesmo hagiográficas, de pouquíssima nuance ou questionamento acerca das complexidades do indivíduo. Privilegia-se a estrutura dos talking heads, ou seja, as cabeças falantes entrecortadas por trechos de material de arquivo (sobretudo nos palcos, posto que os ícones musicais predominam). Familiares, parceiros próximos e especialistas na área abordada surgem em tela para comprovar que o eleito era, sim, genial, diferente dos demais, e digno de tantas honrarias.

Ora, alguns elementos incomodam nesta padronização do filme-elogio: em primeiro lugar, a submissão do cinema ao objeto de estudo, como se a linguagem cinematográfica precisasse de diminuir, tornando-se discreta e invisível, para não roubar o holofote da pessoa amada. Em segundo lugar, a incapacidade de dialogar em termos estéticos, incorporando na linguagem audiovisual o estilo da figura retratada — um filme radical para uma pessoa radical, por exemplo, ou um projeto fragmentado e frenético para alguém disperso e frenético. 

As Muitas Mortes de Antônio Parreiras compreende que nenhuma pessoa pode ser resumida ou esclarecida, e que as melhores biografias são aquelas destinadas a desconstruir seus objetos de estudo.

Em terceiro lugar, é exasperante a crença de que certos artistas e celebridades “merecem um filme”, como se a obra audiovisual constituísse questão de meritocracia, ou uma consequência inevitável de suas qualidades. O cinema, neste caso, se torna menos um gesto de criação do que um luxuoso presente. Em quarto lugar, a vocação explicativa e reveladora, por se estimar a necessidade de contar o biografado, resumindo-o ao espectador. Parte-se do pressuposto que o interlocutor desconhece todas as informações. Portanto, é preciso pegar generosamente em suas mãos, tal qual uma criança, e começar do princípio, de preferência, do nascimento ao túmulo. “Ele nasceu no dia…”.

A lista poderia continuar. As Muitas Mortes de Antônio Parreiras supera todos estes problemas graves, além de mais alguns. Constitui uma obra iconoclasta, arriscada, sem a mínima pretensão de explanar ou sintetizar a vida e obra do pintor niteroiense. Quem desejar conhecer com exatidão seus primeiros quadros, como aprendeu a pintar, a conquista do sucesso e afins, terá que procurar no Google, Wikipédia e similares — esta não é a função do cinema, segundo o diretor Lucas Parente. Ele parte do pressuposto que o cinema serviria a dialogar com o protagonista, ao invés de compreendê-lo. Em consequência, diferencia-se radicalmente do formato da reportagem jornalística.

Esteticamente, o cineasta adota uma janela inicial mais estreita, semelhante tanto aos retratos fotográficos em still quanto a diversas pinturas de Parreiras. Combina os trabalhos produzidos pelo protagonista com outros, da mesma época, além de segmentos visuais que o ajudem a contextualizar a época (filmagens de Humberto Mauro e Silvino Santos, por exemplo). Evita a narração didática em off, os letreiros e similares, preferindo distorções óticas e sonoras — estas últimas, com o som dublado sobre as falas de Pepe Bertarelli e Leo Pyrata. Desta maneira, sublinha a opção pelo artifício e pelo distanciamento, em detrimento do realismo e da imersão.

Parente obtém um efeito hipnótico, espécie de transe dos sentidos. Quem for à sessão para esclarecer dúvidas, sairá com ainda mais perguntas — um mérito considerável desta obra, convenhamos. Isso porque a imagem do Museu Antônio Parreiras se comunica com aquela do Museu Nacional em chamas, conectando passado e presente. O ato de pintar se recria à nossa frente, conforme o personagem fictício reproduz as cores e opções estéticas do original. Ao mesmo tempo, salta-se dos rabiscos iniciais a uma versão intermediária do quadro, e então, à pintura finalizada; enquanto se compara a paisagem real com a representação pictórica do artista, que bradava: “Poucos homens haverá neste mundo mais realistas do que eu”

O projeto vai além ao introduzir elementos fabulares, a exemplo das aves empalhadas, além da associação entre personagens indígenas girando, juntos a uma pedra girando. As mortes do título se concretizam de maneira espetacular: Parreiras morrerá na natureza que ama; vítima da flecha de um indígena; ou de desgosto após reações negativas ao seu trabalho. Por parte da crítica, há de se admirar quando um cineasta compreende seu biografado enquanto ponto de partida, não um ponto de chegada. O pintor se torna um princípio, uma evocação ampla, livremente inspirada no real. A realidade nunca prende o filme, tal qual uma âncora no barco cinematográfico. Serve de mero incentivo, do qual se distanciar assim que possível.

Em nenhum momento As Muitas Mortes de Antônio Parreiras sugere que o homem constituía o melhor pintor de sua época, um pioneiro, de caráter ilibado, bom pai, bom marido, etc. Nunca presta homenagem ao homem retratado, tampouco o ataca. Pelo contrário, privilegia as ambiguidades no percurso, “pois a corrupção tem seus encantos”, segundo um diálogo. Sugere, igualmente, que a representação de mais de cem anos atrás dificilmente se sustentaria no que diz respeito ao olhar para a alteridade esperado das representações sociais no século XXI. 

Em especial, compreende que nenhuma pessoa pode ser resumida ou esclarecida, e que as melhores biografias são aquelas destinadas a desconstruir seus objetos de estudo. Em oposição a montar um quebra-cabeça, embaralhar novamente as peças. Deixemos às escolas e demais instituições de ensino que esmiúcem as compreensões: o cinema precisa elaborar algo novo a partir da vida de Parreiras, não para Parreiras, muito mesmo se expressando em nome dele.

Parente envereda por uma evocação fértil da vida deste homem, dialogando a partir do pintor, para além do homem em tela. Nem o cinema, nem as artes plásticas se esgotam neste gesto. Ele percebe, por fim, que a melhor abordagem num encontro entre distintas linguagens artísticas seria de ordem dialética. Neste caso, o cinema do autor experimental se encontra com a pintura do artista realista para produzir uma terceira forma, incompatível com as anteriores, e decorrente desta fricção improvável. O cinema serve, portanto, a atritar formas e sentidos, ao invés de amansá-los.

As Muitas Mortes de Antônio Parreiras (2025)
8
Nota 8/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.