Até o Cair da Noite (2023)

A paixão dos brutos

título original (ano)
Bis ans Ende der Nacht (2023)
país
Alemanha
gênero
Suspense, Policial
duração
123 minutos
direção
Christoph Hochhäusler
elenco
Timocin Ziegler, Thea Ehre, Michael Sideris, Ioana Iacob, Rosa Enskat, Aenne Schwarz, Gottfried Breitfuß, Sahin Eryilmaz, Ronald Kukulies
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Entre os preconceitos e equívocos envolvendo a direção de fotografia no cinema, um dos principais reside na crença comum de que o profissional se limitaria a “embelezar uma imagem”, ou retratar aquilo que o diretor lhe manda. Acredita-se que a equipe de cinematografia apenas iluminaria o espaço e gravaria as ações — razão pela qual se considera, tantas vezes, a fotografia enquanto categoria “técnica”, em detrimento de artística. É difícil encontrar na cinefilia vertentes que considerem o fotógrafo como autor, ou pelo menos, uma figura tão responsável por “contar uma história” quanto o diretor e roteirista.

Ora, Até o Cair da Noite seria um belo exemplo para se discutir a capacidade de storytelling da luz, dos enquadramentos, da profundidade de campo. Sem o trabalho de Reinhold Vorschneider, um dos melhores diretores de fotografia do cinema alemão contemporâneo, o resultado poderia ser um suspense policial banal, envolvendo amores proibidos, um cartel de drogas e chefões ameaçadores. Em outras palavras, a premissa não soava, no papel, muito promissora. 

No entanto, a cena inicial do longa-metragem provoca uma surpresa. Um apartamento vazio começa a receber a visita de diversas pessoas, que decoram os cômodos. No entanto, elas estão borradas, superexpostas, como num baile de vultos. Determinado o cenário de uma festa de boas-vindas para Leni (Thea Ehre), começam os enquadramentos pouco usuais (vide as imagens em destaque abaixo): rostos colocados no mesmo eixo, porém virados para lados distintos; corpos separados por batentes e multiplicados por reflexos em simultâneo; ou ainda sobrepostos a sombras e outros objetos. Nosso primeiro contato com estes personagens ocorre de maneira difusa.

A ambientação se torna, portanto, um elemento fundamental à jornada. Nos locais bastante escuros, Vorschneider aplica inúmeras lâmpadas ou faróis de carro para promover um contraluz fortíssimo em Leni e no policial Robert (Timocin Ziegler), cuja mecha caída na testa cria um halo dourado em volta do rosto. A imagem representa as passagens de tempo através de sucessivos movimentos panorâmicos da esquerda para a direita, deslizando em velocidade idêntica, e gerando uma noção de acontecimentos cíclicos — culminando no giro em 360º.

Um filme noir à moda antiga. Há o herói infiltrado na gangue perigosa, a femme fatale, os planos escondidos. No fundo, o diretor acredita pouco na subtrama policial, que ocupa um papel menor, e teima a convencer.

Conhecemos os personagens e sua psicologia através das luzes, ao invés dos diálogos ou das reviravoltas. A iluminação extremamente contrastada, a textura de película e as cores “queimadas” reforçam a impressão de segredo, de algo escondido, enquanto valorizam as atitudes bruscas. Como a escuridão não revela nuances, é preciso que os atores briguem, se movam de maneira ainda mais expressiva. O jogo motiva corpos mais soltos, expressões marcadas no rosto, ações sem ambiguidade nem sutileza. É a direção de fotografia, não o roteiro, que nos conta sobre o aspecto tão frágil quanto agressivo dos personagens.

Este contexto favorece a premissa de um filme noir à moda antiga. Há o herói infiltrado na gangue perigosa, a femme fatale por quem ele se apaixona perdidamente, os planos escondidos, as trapaças surpreendentes. No fundo, o diretor Christoph Hochhäusler acredita pouco na subtrama policial, que ocupa um papel menor, e teima a convencer pelo baixo investimento em sua verossimilhança. Trata-se de uma gangue cujas drogas nunca se veem; uma rede criminosa gigantesca representada por um homem só; um centro de operações resumido a um apartamento comum e um computador disponível na mesa, para quem desejar acessá-lo. Com um pouco de humor, o material se prestaria a uma paródia do gênero.

Mesmo assim, o projeto insiste em se levar a sério até demais, acreditando nas negociações letais, e amores ainda mais letais. O filme se sai muito melhor enquanto drama, quando revela a saída de Leni da prisão, a relação problemática com Robert (que finge ser seu namorado, embora a ame de verdade), e os jogos de poder entre ambos. Às vezes, é ela quem detém as cartas e controla as atividades do investigador, às vezes, é ele quem lhe diz o que fazer, e restringe seus movimentos. O namoro se inicia como um tango — um avança, o outro recua — até se tornar a crônica de um relacionamento abusivo.

Este aspecto provoca certo incômodo, pela dificuldade em se distanciar dos personagens para observar o caráter tóxico da relação. Assim, passa a idealizar as chantagens, humilhações, agressões, provindas de um homem que “ama demais” e não controla seus impulsos, com medo de perder a mulher amada. Conforme a narrativa se afasta de Leni, pendendo em favor de Robert enquanto real protagonista (ela será esquecida durante parte considerável do terço central), o ponto de vista o beneficia, justificando suas ações e colocando-se junto ao sujeito abusador.

Logo, o anti-herói ameaça se converter em herói tradicional, cuja violência se defende pela inabilidade em amar — pobre dele, que nunca foi ensinado a tal. No carro, promete milagres à sua querida: “Quer que eu pare a chuva?”. A música melodiosa no rádio sugere uma valsa de amores antigos. Adiante, no mesmo carro, eles são separados por um vidro, mas fazem amor apesar da barreira transparente. O roteiro possui a certeza de contar uma história fascinante de sentimentos e traições, sem perceber o caráter condescendente em relação ao policial, e a postura passiva na qual a mulher é progressivamente colocada.

Till the End of the Night (título internacional) constrói metáforas inesperadas para representar o amor profundo. Trata-se de cenas tão solenes que se aproximam do patético — este é o segundo filme alemão com a mesma característica no Festival de Berlim 2023, após Someday We’ll Tell Each Other Everything. Uma mulher descreve seu relacionamento (igualmente tóxico) com o marido traficante através de trufas de chocolate, revelando os sabores que a encantam, e aqueles que a enojam. Robert se irrita com os bichos de pelúcia de Leni, que continua jogando em direção a ela. É possível debochar destas imagens, ou se seduzir por elas, dependendo do grau de sensibilidade do espectador.

Por fim, a obra carrega o mérito de sua confiança. O diretor demonstra certeza em seu procedimento, sua fotografia e direção de atores, que prefere o maneirismo ao naturalismo. Quanto mais se afasta do romance para resolver o quiproquó policial, mais Timocin Ziegler intensifica os tiques, o olhar soturno, a composição embrutecida com as roupas escuras e os cabelos engordurados. Victor Arth (Michael Sideris) carrega os traços do playboy arrogante, com suas camisas estampadas e objetos de grife. Nenhum personagem desta ciranda escapa ao imaginário popular, cartunesco, do cinema noir.

A obra gosta de brincar de ser árida, impiedosa, moralmente ambígua, repleta de personagens de fundo doce, precisando vestir uma roupagem caricatural para sobreviver neste ambiente masculino e impiedoso — vide a composição tragicômica da chefe, ou a tendência a esquecer Nicole (Ioana Iacob) quando não serve mais ao desenlace do suspense. O filme elabora personagens fascinantes e realistas, porém presos a um mundo caricatural, estilizado até demais. De tanto posar como durão e agressivo, começa a acreditar em sua própria farsa.

Até o Cair da Noite (2023)
6
Nota 6/10

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