Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados (2023)

Bovarismo

título original (ano)
Irgendwann Werden Wir Uns Alles Erzählen (2023)
país
Alemanha
gênero
Drama, Romance
duração
129 minutos
direção
Emily Atef
elenco
Marlene Burow, Felix Kramer, Cedric Eich, Silke Bodenbender,
Florian Panzner, Jördis Triebel, Christian Erdmann, Christine Schorn, Axel Werner, Victoria Mayer
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Someday We’ll Tell Each Other Everything possui a aparência de um filme de férias. As imagens aproveitam a luz do sol no campo, sugerindo dias sempre quentes, com cores vivas e fortes. As belas paisagens se estendem a perder de vista, e a protagonista Maria (Marlene Burow) tem poucas ou nenhum tarefa a efetuar ao longo de seus dias morosos. A textura da película sugere volume, um mundo palpável, realista. Na cena inicial, a garota é vista empapada de suor na sua cama enquanto lê um romance — mas o líquido ao redor dos olhos não poderia corresponder a lágrimas?

De certa maneira, existe um aspecto de Madame Bovary nesta heroína trágica. Acolhida como filha pela família do namorado, ela para de ir à escola, e desiste de acompanhar o rapaz em suas viagens. Prefere passar o dia devorando histórias de amor, lânguida, na cama. À noite, faz sexo com seu querido Johannes (Cedric Eich), um sujeito bom, mas um tanto inofensivo e previsível. Assim como Bovary, o desejo pelo romanesco a leva ao envolvimento proibido com sujeitos agressivos, mais velhos, de reputação questionável. O Rodolphe de Flaubert chama-se aqui Henner (Felix Kramer).

A partir do livro homônimo de Daniela Krien, a diretora Emily Atef concebe uma mulher enigmática, que se deixa levar pelas circunstâncias, de maneira espontânea. Apesar de introvertida, e de poucas palavras, ela embarca na provocação do vizinho, 23 anos mais velho do que ela. Depois de um episódio de assédio, decide testar até onde o homem estaria disposto a ir. O caso lhe fornece a excitação e o senso de risco que jamais encontraria na casa aconchegante e tediosa do namorado. Entre levar uma vida em banho-maria e se arriscar a perder tudo numa história intensa, embarca na segunda opção.

O longa-metragem carrega os vícios e virtudes típicos das adaptações literárias. Por um lado, dedica tempo considerável a construir a personalidade da mulher, evitando julgá-la moralmente por seus afetos e atitudes. Pelo menos uma dezena de figuras ao redor (a mãe no vilarejo vizinho, a mãe de Johannes, o avô atento, a avó conservadora) ganham momentos para desenvolver seu ponto de vista político e social. Pode-se comemorar uma galeria tão complexa de coadjuvantes, que não se limitam a orbitar em torno de Maria — cada um possui seus conflitos próprios.

Someday We’ll Tell Each Other Everything é uma cilada, um destes filmes que caminha com confiança pela linha tênue entre o respeitável e o ridículo.

Por outro lado, a narrativa se arrasta consideravelmente, e diversos instantes soam incorporados apenas para representar passagens do romance, embora soem acessórios e superficiais no filme (a viagem da avó à Alemanha recém-unificada, a chegada mal explicada do filho distante). O jogo de atração e repulsa entre Maria e Henner se materializa em pelo menos seis encontros diferentes, todos eles culminando no casal arrancando as roupas e fazendo sexo bruto na mesma cama, através dos mesmos movimentos e ângulos. Ainda que o jogo de poder se inverta múltiplas vezes entre ele e ela, a representação imagética se repete. A montagem seria beneficiada com uma abordagem mais enxuta.

Nas cenas de sexo, Atef e o diretor de som Kai Tebbel optam por aumentar a intensidade dos ruídos e gemidos. Assim, o dedo deslizando sobre o vestido provoca um barulho altíssimo, e as constantes tomadas de posição brutais de Henner (que agarra a menina, vira-a de costas de modo abrupto, arranca as calcinhas antes de penetrá-la) sustenta a construção sonora de uma violência alarmante. Em outras palavras, existe um clima profundamente solene nesta história de amores profundos e infinitos, como se fazia antigamente. “Eu quase morri!”, reclama a garota, tendo passado alguns poucos dias longe do amor de sua vida.

Talvez os nossos tempos cínicos não permitam mais tamanha romantização, nem a crença séria no amor de perdição. De qualquer modo, na sala de cinema do Festival de Berlim, dezenas de críticos — sobretudo os alemães — riam de maneira jocosa, ridicularizando as cenas e os gestos suaves, poéticos (um lencinho umedecido que ele oferece à amada, para limpar o sangue da menstruação pós-coito). A sensibilidade contemporânea pediria alguma espécie de distanciamento através do humor, do absurdo, do horror. Ora, Atef adere a esta aventura com um torpor saudosista, evitando qualquer forma de renovação. 

Esta fé cênica na profundidade do romance provoca as maiores qualidades e defeitos da trama. É louvável encontrar uma cineasta que acredite tanto nesta abordagem que fuja às modernizações, ao enxugamento da trama longa, à introdução de elementos de conflito que não venham de Maria, Johannes ou Henner. Cada vez que o marido pronuncia algo como “Nossa, você demorou bastante na casa da sua mãe!”, o espectador ciente do relacionamento escondido cai na risada. Ora, nada na direção permite enxergar a cena com qualquer postura diferente do respeito.

A cineasta dirige a jovem Marlene Burow de modo a obter um corpo disponível e um olhar desafetado, tal qual uma tela em branco onde o espectador pode projetar o sentimento que lhe convier. “Faça de mim o que quiser”, avisa a menina no enésimo encontro com o amante. O rosto está impassível. Ela não se contorce de prazer, não chora, não se desespera. Em geral, percorre as planícies gramadas com os mesmos vestidos, o cabelo preso em tranças, o olhar de menina. Assim, não se torna vítima nem mártir — ainda que o espectador afeito ao bovarismo consiga antever o prenúncio da morte. Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure…

Por sua vez, Felix Kramer se esforça para compor com seriedade este homem desafiador, a um passo da caricatura. O sujeito fanático por literatura, apreciados de citações extraídas de romances clássicos, também é bruto, violento, habitando uma casa imunda e velha. A direção de fotografia adora captar as unhas longas e repletas de terra do homem que joga Maria com força contra a cama e diz: “Lembre-se: eu sou assim”. Novas risadas do público pela sala. E o que dizer de Cedric Eich, encarregado do jovem traído gentil, ou seja, o Charles Bovary da trama? 

Não há alternativas muito fáceis aqui. Someday We’ll Tell Each Other Everything é uma cilada, um destes filmes que caminha com confiança pela linha tênue entre o respeitável e o ridículo. A produção transparece um grau de profissionalismo e de sofisticação que evita o patético, a impressão de algo tosco ou mal feito. No entanto, leva-se muitíssimo a sério, mesmo diante de frivolidades e absurdos, a ponto de soar anacrônico, desconectado dos públicos atuais. Ele será considerado corajoso ou leviano pelos mesmos motivos.

Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados (2023)
6
Nota 6/10

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