Blue Jean (2022)

A mulher que implodiu

título original (ano)
Blue Jean (2022)
país
Reino Unido
gênero
Drama
duração
97 minutos
direção
Georgia Oakley
elenco
Rosy McEwen, Kerri Hayes, Lucy Halliday, Lydia Page, Stacy Abalogun, Amy Booth-Steel, Farrah Cave, Lainey Shaw, Aoife Kennan, Scott Turnbull, Izzy Neish, Becky Lindsay
visto em
Cinemas

Poucos filmes de temática LGBTQIA+ se focam em uma personagem como Jean (Rosy McEwen). Em geral, preferem-se os casos exemplares: o garoto incrivelmente efeminado, a menina trans em fase de descoberta, a garota lésbica que ousa enfrentar a tudo e a todos. Busca-se, sobretudo no cinema comercial, a representação de uma sexualidade transmitida de modo muito visível no corpo, nos gestos, nas roupas e acessórios. Em outras palavras, os extremos da afirmação ou repressão, da alegria ou da melancolia, do sofrimento internalizado (O Segredo de Brokeback Mountain, Carol, Ratos de Praia, Desobediência) ou da euforia de ser como se é (Priscila, a Rainha do Deserto, Nunca Fui Santa, Três Formas de Amar).

Ora, Jean é uma personagem intermediária em sua manifestação da sexualidade. Lésbica assumida para seu pequeno grupo de amigas, ela mantém um relacionamento casual e afetuoso com Viv (Kerrie Hayes). Entretanto, na escola, onde trabalha como professora de educação física, oculta sua sexualidade, até pelo fato de ter se divorciado de um homem recentemente. Mantém o cabelo mais curto do que a maioria das mulheres, porém não traduz sua sexualidade em gestos de afronta, nem símbolos socialmente associados à masculinidade, distinguindo-se das demais amigas lésbicas.

Ela seria uma figura que, em parte considerável das produções, se restringiria à amiga da protagonista, na condição de coadjuvante. É louvável que a diretora Georgia Oakley decida se concentrar nesta mulher que funciona enquanto uma ponte entre um mundo assumidamente queer e outro, tradicional e punitivista, fruto da perseguição iniciada pela ultraconservadora Margaret Thatcher. Jean compreende e aceita sua sexualidade, porém não a ponto de torná-la pública. Frequenta bares lésbicos, embora tenha receio de encontrar conhecidas ali. Não pretende fazer um coming out, ainda que tema uma descoberta de sua sexualidade pelo mundo exterior.

Jean possui diversas atitudes reprováveis, estando longe da figura da mártir piedosa, ou da militante virtuosa. O texto se identifica com ela em suas falhas, incertezas, arrependimentos.

O roteiro introduz sucessivos elementos de conflito para empurrar a mulher rumo ao abismo e confrontá-la ao processo de autoaceitação. Quando liga a televisão ou o rádio, as notícias dizem respeito invariavelmente à perseguição contra minorias sexuais e de gênero. Na sala dos professores, a conversa se volta ao horror de encontrar, por acaso, uma pessoa gay ou lésbica ao redor. Em seguida, entra na turma uma adolescente identificada pelas colegas como lésbica, estabelecendo um vínculo tácito com a professora. A menina se torna alvo de violências cada vez mais fortes, o que confronta Jean ao seu silêncio e conivência.

O procedimento poderia resultar num sadismo da direção, caso o olhar não transbordasse de empatia e compreensão. Oakley possui uma delicadeza que jamais se confunde com condescendência, nem com atenuação dos problemas. Esqueça as cores rosas, a câmera lenta, a música triste dedilhada ao piano. A cineasta prefere dedicar tempo ao dia a dia da heroína, filmando sua inércia em casa, a solidão, as noites de bilhar com as amigas, os passeios noturnos. Há tempo suficiente para construir uma psicologia introvertida, muito inteligente, mas também repleta de culpa cristã e de homofobia internalizada.

Jean possui diversas atitudes reprováveis, estando longe da figura da mártir piedosa, ou da militante virtuosa. O texto se identifica com ela em suas falhas, incertezas, arrependimentos. McEwen apresenta uma atuação brilhante, muito contida, de poucas expressões, porém transmitindo uma infinidade de sentimentos represados por trás da aparência de professora exemplar. Ao invés de lhe proporcionar instantes para extravasar a dor e expiar todos os traumas, o filme prefere que ela imploda. Aumenta, cena após cena, a tensão e a perseguição, até a personagem não suportar mais. Transmite, assim, o desgaste emocional aplicado especificamente à população LGBT.

Isso significa que, além de todas as pressões cotidianas por ser mulher, divorciada, de classe média, ela ainda acumula a perseguição específica pela sexualidade. Blue Jean desenha um painel muito cuidadoso e preciso da homofobia, representando os sentimentos de medo da diferença, ódio ao desconhecido, vingança contra tudo aquilo que não me diz respeito. Detesto aquilo que não sou eu. Existe uma curiosidade profunda dos personagens heterossexuais e conservadores pela vivência destas pessoas estranhas, supostamente perversas e maliciosas, sobre as quais conhecem pouco. A ignorância se torna um fator determinante para a recusa do outro.

Oakley imagina esta violência invisível como uma espécie de bruma sobre os personagens e cenários. A direção de fotografia aposta em tons crepusculares, frios, além de uma textura profundamente granulada que nos remete ao passado e aos cenários inóspitos, pouco acolhedores. A casa de Jean está sempre escura, negligenciada, e as caminhadas pela rua soam como passeios de solidão e abandono. Os tons azulados e sépia correspondem a uma paleta destinada a traduzir, esteticamente, o sentimento de uma pessoa pressionada por sua ética e moral. Jean sabe que precisa se impor face à violência praticada contra Lois (Lucy Halliday), e percebe que precisa se impor por si mesma. Mas não consegue.

Atinge-se, portanto, um estetismo discreto, muito bem pensado em termos de enquadramento, profundidade de campo, duração dos planos. A montagem opta por um ritmo contemplativo, deixando o pesar se instalar e aprofundar gradativamente. No entanto, jamais arrasta as cenas a ponto de criar uma tensão próxima do suspense, ou um prazer de testemunhar o sofrimento. O espectador nunca é convidado a ter pena desta mulher, ou admirá-la sofrer. Em paralelo, o filme nunca chama atenção à beleza das composições em si, preferindo que todo o aparato artístico (a construção naturalista de sons, o despojamento discreto dos figurinos e cenários) sirva para melhor descrever a heroína. Poucos filmes dedicam tamanho esforço, conjunto e coeso, para transmitir, via linguagem, o estado emocional de seus personagens.

É certo que algumas passagens soam acessórias demais, forçando Jean a confrontar-se de uma vez por todas a seu lesbianismo. A escolha de torná-la única testemunha do beijo entre duas meninas, e a cena do encontro com a aluna no bar lésbico empurram a professora contra a parede. O ponto de vista se mostra atencioso, porém agressivo em determinadas cenas, tal qual um psicólogo que decide colocar o dedo nas feridas abertas quanto sente que precisa deste confronto e elaboração para seguir em frente. 

No entanto, estes instantes evitam o sensacionalismo das dores, ou o espetáculo da miséria de Jean, Lois, Siobhan e Viv. Estas garotas sofrem e se maltratam umas às outras, por motivos alheios às suas escolhas, apenas por não saberem de que outra forma poderiam agir. Existe um desconhecimento, uma incapacidade de viver plenamente sua existência diante da opressão crescente. Por isso, a conclusão em aberto, plantando uma semente de otimismo que a diretora se recusa a filmar, serve para deixar no espectador a imagem mental de um desabrochar íntimo e social destas mulheres. Acredita-se numa evolução rumo à aceitação e tolerância, porém sem receitas mágicas. A inclusão, se vier e quando vier, não ocorrerá de modo fácil.

Blue Jean (2022)
8
Nota 8/10

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