Barba Ensopada de Sangue (2023)

O homem que deseja morrer

título original (ano)
Barba Ensopada de Sangue (2023)
país
Brasil
gênero
Suspense, Drama
duração
108 minutos
direção
Aly Muritiba
elenco
Gabriel Leone, Thainá Duarte, Roberto Birindelli, Ivo Müller, Ricardo Blat, Teca Pereira
visto em
18º CineBH (2024)

O início apresenta afinidades com diversos filme de terror. Um forasteiro chega a uma pequena cidade litorânea onde todos os habitantes apresentam olhares de desprezo ou intimidação. O casebre decadente ocupado por ele está sempre escuro (mesmo de dia), incluindo espelhos sujos que criam reflexos assustadores. Há barulhos estranhos lá fora. Barba Ensopada de Sangue adapta para o litoral catarinense a premissa típica do viajante numa cabana na floresta, sofrendo o ataque de forças estranhas.

No entanto, o inimigo desta trama é humano, demasiadamente humano. O viajante sem nome (Gabriel Leone) logo descobre que a reação pouco amistosa se deve ao seu avô, um sujeito considerado demoníaco na região. Por isso, os moradores transferem ao neto os sentimentos de raiva e medo. “Tu vai morrer aqui”, dispara um barbeiro local, em tom de conselho/ameaça. Para piorar a situação, o jovem conquista de imediato uma garota grávida da região, algo que afronta o senso de propriedade destes homens brutos. O herói representa o outro, o estrangeiro, o diferente e, por isso, precisa ser eliminado para a manutenção de uma estrutura essencialmente reacionária. 

No entanto, o personagem central permanece um mistério. Conhecemos pouco das experiências deste homem em sua cidade de origem, os vínculos com o pai e o avô, ou o relacionamento confuso com o irmão, com quem compartilhou uma namorada. Diz-se instrutor de natação, embora nunca tenhamos indícios concretos de uma vida profissional. Ele chega na região, ocupa a propriedade do falecido avô, e ali resta por tempo indefinido, sem manifestar objetivos reais (ele nunca tenta, de fato, vender o imóvel). 

De certo modo, o rapaz aparenta se entregar à morte. Ele busca sua perdição, embora jamais compreendamos exatamente os motivos de tamanho apreço pelo sacrifício (ou pelo abandono de si).

De certo modo, o rapaz aparenta se entregar à morte, a exemplo das baleias que, de acordo com Jasmine (Thainá Duarte), continuam acolhendo os turistas apesar de décadas de pesca predatória por parte dos humanos. O protagonista é representado por estes animais com baixo instinto de preservação e autodefesa. Ele sofre ameaças, humilhações, intimidações, porém não cogita deixar o local. Quando busca sua cadela, sequestrada por capangas, acredita que passará ileso pela multidão armada e recuperará o bicho. Promete voltar para a namorada numa festa, mas perde tempo conversando com um estranho no bar. Ele busca sua perdição, embora jamais compreendamos exatamente os motivos de tamanho apreço pelo sacrifício (ou pelo abandono de si).

O longa-metragem possui outros elementos insolúveis. Por que todos sentem uma necessidade imediata de ir em direção ao forasteiro e lhe explicar tudo aquilo que ele (e o espectador) precisam saber? Trata-se de um rapaz essencialmente conformista — um ouvinte por definição. As cenas se pautam por sucessivos encontros a dois, onde o coadjuvante confronta o recém-chegado e então fala, detalha, enquanto este os escuta. Jasmine, a ex-namorada, o pescador, o homem idoso no bar, a senhora justiceira e a proprietária das terras se alternam na jornada explicativa e linear. 

O herói escuta, acena, e volta para a casa sucessivamente invadida, pichada, vigiada. Encontra um esqueleto na caixa d’água, além de restos de um cadáver pela estrada. E segue em frente. Ele tem a possibilidade de fugir com a garota grávida e iniciar uma família em qualquer outro lugar (o sonho da família patriarcal bate à porta), porém insiste em passar os dias no local do qual não gosta de fato, e onde quase ninguém gosta dele. O jovem encalhou nesta praia, e ninguém consegue salvá-lo. Mesmo a aproximação com Jasmine soa abrupta, improvável, visto que ele não efetua o mínimo esforço para a concretização do romance. Por trás da barba espessa (às vezes, estranhamente mal colada ao rosto) resta um indivíduo deprimido, passivo, de difícil identificação pelo espectador.

Barba Ensopada de Sangue transparece escolhas curiosas no que diz respeito à caracterização de personagens e conflitos. Os sotaques variam muito para cada ator. Não permitem determinar a origem exata do protagonista, muito menos de Jasmine, dona de uma prosódia bastante particular, um ritmo incomum de trabalho com texto, e falas numa mistura sulista-carioca-portuguesa. As cenas em dupla são marcadas diálogos longuíssimos, em provável respeito ao livro de Daniel Galera, no qual é baseada esta adaptação. A montagem evita interromper o palavreado, enquanto a câmera se limita a observar estas pessoas frontalmente, com pouca variação. Existe uma recusa do dinamismo, como se a conjunção entre poucas ações e muitos diálogos representasse uma premissa inviolável.

O que dizer, então, da doença do herói, que o impede de se lembrar do rosto das pessoas? Por que introduzir tal informação tão tarde na narrativa, ou mesmo mantê-la no corte final, se possui impacto nulo no restante da trama, ou em sua caracterização psicológica? O que a citação a Jules e Jim faria naquele contexto tão árido para referências artísticas? Como compreender o clímax e desfecho, resolvidos em poucos planos, de maneira apressada, em oposição aos encontros dilatados até então? Existe uma desproporção singular entre os núcleos e os tons. A baleia, símbolo-central, nunca se torna propriamente realista, nem adquire um aspecto fantástico e mágico de fato. Permanece obtusa… a exemplo do viajante.

A principal coerência, no final, diz respeito à obra de Aly Muritiba, sempre interessado em estudos da masculinidade confrontada às transformações contemporâneas. Em sua filmografia, questiona o senso de honra, de potência e virilidade de sujeitos traídos (Para Minha Amada Morta), dos boxeadores (Irmãos Freitas), caubóis (Jesus Kid), policiais (Deserto Particular) e assaltantes de bancos (Cangaço Novo). Através destes indivíduos em crise, investiga a possível manutenção do patriarcado numa sociedade que se transforma, e não parece mais comportar tais arquétipos antiquados. Os homens de Muritiba são solitários, deslocados socialmente, ou portadores de uma raiva represada. Neste sentido, o material de Daniel Galera cai como uma luva na investigação do autor.

Barba Ensopada de Sangue (2023)
5
Nota 5/10

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